Lendas do Sul: A LENDA DO GRITADOR

"...se você for passear pelos campos dos aparados da serra à noite e por acaso ouvir algum grito assustador, o melhor é não retrucar. Na dúvida encerre logo o passeio e espere o clarear do dia..."

FOTO: Parque Aparados da Serra: terra do 'gritador'
15 de setembro de 2020

Como bom apreciador de histórias e lendas e sem procurar muito, volta e meia me deparo com uma ou outra já conhecida ou com uma nova versão. Dias desses, assistindo a um canal do YouTube, encontrei uma que eu não conhecia: A lenda do Gritador.

A lenda em si é bem sinistra e também muito popular entre os moradores das Serras Catarinense e Gaúcha.

Uma lenda para ser chamada como tal tem que ter um pouco do fantástico, do surreal e muito do imaginário local. As histórias repassadas através de gerações vão se transformando ao longo dos anos e a cada narrativa é somada a percepção da pessoa que reconta o fato. É basicamente aquela história de “quem conta um conto, aumenta um ponto”. Ou o telefone sem fio, em que a mensagem final não é exatamente a que foi passada originalmente.

Para conhecer melhor a lenda e o contexto em que ela está inserida, entrei em contato com o autor de um livro que fala sobre algumas lendas daquela região, as quais lhe foram repassadas oralmente em conversas ao redor do fogão à lenha ou de fogueiras em meio aos cânions.

O fato é que o Frank Lummertz, historiador e pesquisador, morador de Praia Grande em Santa Catarina, resolveu colocar essas lendas contadas oralmente em um pequeno livro chamado “Pirambeira”. O livro é uma boa fonte de informação à respeito de muitas lendas que sempre ouvimos os mais velhos contar e, também, para conhecermos algumas “novas”.

Uma “das novas”, para mim é claro, é a do Gritador, que transcrevo abaixo exatamente como contada pelo autor do livro, Frank Lummertz.

“Os mais antigos moradores do entorno do parque, nos grotões e coxilhas serranas, contam que em uma das noites estreladas nos Aparados da Serra em um tempo já passado, houve um antigo morador cujo nome não é revelado, porque recebeu uma maldição. Uns dizem que é alma penada, outros afirmam já tê-lo visto por aí. O caso foi que, quando vivo, após um dia de muito trabalho campeiro pelas coxilhas de cima da serra, o tal fulano foi convidado para uma fandangueira aos redores do pé da serra. Como de costume, amarrou seu velho cavalo Malacara e foi tomar um banho para se limpar do suor. Demorou tanto debaixo da água que a sua mãe, ao perceber que o cavalo estava exausto de cansado, decidiu solta-lo, pois assim o cavalo velho de guerra poderia descansar em paz. Tal fulano, ao sair do molho e ao perceber a burrada que sua mãe acabara de cometer, ficou muito enfurecido e descontrolou-se. Chamou-a tudo que foi nome feio, rogou umas trezentas malesas, foi praga pra todos os lados, pois sabia que chegaria atrasado ao baile. Finalmente, como numa tentativa de evitar o atraso, pegou as selas e rédeas de seu cavalo e acabou por encilhar a velha, sua própria mãe. Tadinha daquela velha senhora! (…) Foi aí que aconteceu o inevitável. A pobrezinha, tão cansada de tanto esforço inútil aos galopes com seu filho às costas, acabou por falecer. Mas antes, um pouco antes de morrer, ela rogou uma praga ao filho: “Minha alma ao morrer subirá diretamente ao céu enquanto que a sua, filho desonrado, nunca mais terá descanso”. Foi que ao voltar para casa em uma serração de tirar as vistas, o tal do fulano acabou se perdendo entre campos, coxilhas e capões de araucária em meio à brancura da viração. Dito e feito: sua alma amaldiçoada nunca conseguiu descansar e dizem que ela anda solitária, atordoada, dando gritos de dor pelas grotas, campos e cânions dos Aparados da Serra. Também os mais velhos dizem que se algum sujeito resolver responder aos berros de agonia, essa alma penada vem e pega o infeliz. E é assim que, ainda hoje, os aventureiros, os caçadores, agricultores, os fazendeiros ainda escutam os berros atordoados do Gritador.”

Como toda a lenda, esta também tem mais de uma versão. Uma simples pesquisa na internet é possível achar esta e diversas outras versões, nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Piauí. A versão mais ouvida no Rio Grande do Sul reporta-se à época dos Jesuítas, mais precisamente, quando os padres foram expulsos das terras brasileiras pelo Marquês de Pombal, narrada desta forma:

“Como se sabe, toda a região de “Cima da Serra” teve um grande contingente de Jesuítas com seu gado esparramado pela então Vacaria dos Pinhais, ao partirem, muitos enterraram seus tesouros, na esperança de um dia retornarem. Quando todos estavam a cavar os buracos para esconder suas riquezas, um homem pedia para que gritassem para saber a localização de cada um. Esse homem, segundo acredita-se, não foi embora e ficou cuidando de seu tesouro enterrado. Ao morrer, sua alma ficou presa na região e, à noite, quando alguém grita por um motivo ou outro, ele acha que são seus amigos indicando o lugar de outro tesouro enterrado. Segundo relatos, quando tropeiros ou criadores de gado estão trabalhando à noite e gritam uns para os outros, às vezes escutam outro grito distante. Quando respondem, esse mesmo grito que parecia estar longe, soa cada vez mais perto!!! Lógico que ninguém fica para escutar mais e mais perto. Mas, dizem que, se ele chegar até você, ele inicia um duelo; caso você ganhe, ele lhe entregará o tesouro; caso você perca, tomará o lugar dele para cuidar do tesouro eternamente.”

Estas são as duas versões ouvidas tanto no RS como em SC, porém o gritador também é “ouvido” em outros lugares do país, o que faz dele um personagem do folclore brasileiro.

As lendas, como a do Gritador, repassadas através dos anos e das gerações, carregam na sua essência uma boa pitada de verdade, o que faz delas mais que lendas. Elas por si só fazem pensar e refletir a respeito do real e do imaginário, levantando dúvidas sobre um e outro.

Então, se você for passear pelos campos dos aparados da serra à noite e por acaso ouvir algum grito assustador, o melhor é não retrucar. Na dúvida encerre logo o passeio e espere o clarear do dia, é melhor!

 

Fontes: Livro Pirambeira e Tese de Mestrado de Frank Cardoso Lummertz. https://www.cidadeecultura.com/lendas-nas-serras-catarinense-e-gaucha/. https://www.jornalnovaepoca.com/artigo/lendas-do-sul-o-gritador.




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