DIÁRIO DE MOCHILA – Andanças e aprendizados pela Chapada Diamantina

Buenas! Na semana anterior falei das minhas andanças e mudanças pelo litoral baiano, quando decidi me adentrar no sertão desse estado rumo ao Parque Nacional da Chapada Diamantina. Um período recheado de histórias malucas e aprendizados. Bom proveito!

23 de julho de 2022

Chapada, cheguei

 

Fiquei 2 meses na região da Chapada, passando por 7 cidades diferentes. Visitei mais de 30 cachoeiras, algumas sendo as mais belas que vi até hoje, na grandíssima maioria dos casos, sozinho. O Parque Nacional estava fechado e as trilhas, teoricamente, não podiam ser feitas. Porém, por lá não existe controle de acesso a nada. Ou seja, a exemplo das praias que frequentei no período do lockdown (lembrando que estávamos no meio do auge da pandemia) , as trilhas e cachoeiras estavam lá e ninguém poderia me impedir de ir até elas. E foi o que fiz. Foi quando tive meu primeiro contato real com a natureza do interior. Mata, animais selvagens, rios, travessias, trombas d’água, etc.. E fiz tudo sozinho. Eu e meu GPS. A maior parte das trilhas de lá tem um total de 15 a 20km, em caminhos muito estreitos, com bifurcações, lajedos e até garimpeiros no meio do caminho. A primeira coisa que aprendi era que eu amava fazer isso sozinho. Os turistas nessa região sempre contratam guias. Mas eu já tinha tido experiências com guias na minha antiga vida. Eles determinam o caminho, o ritmo, os tempos e o que tu pode ou não pode fazer. Sozinho eu decidia tudo. E ficava em silêncio. No meu silêncio, escutando apenas a natureza e a mim mesmo. Fora que contratar um guia não é algo barato. Por isso que, hoje, mesmo se me oferecerem de graça, eu agradeço a presença de um guia. Nada contra, mas não abro mais mão dessa liberdade que adquiri.

 

Nego Zau e Astrogildo

FOTO – Pipe com Nego Zau

Conversando com pessoas nas minhas primeiras semanas pela região, descobri que existiam duas figuras emblemáticas que habitavam a mata em simples barracos, próximos a belas cachoeiras, e quis conhecê-los. Era meu lado antropológico da viagem que começava a aflorar. Comecei indo até um assentamento sem terra, chamado Colônia. Lá fui atrás do “Nego Zau”. Achei ele e sua família em uma casa muito simples, onde fiquei por duas noites, esperando as fortes chuvas passarem para ir com ele até sua “toca” no mato. Nesses dias lembro de ajudar seus filhos, netos e agregados, todos crianças, a fazerem as lições de casas. Como era pandemia, as aulas eram apenas a distância. Me surpreendi com crianças de 12 anos que mal sabiam ler e recebiam textos complexos de interpretação. Por lá também tive a experiência de comer cérebro de boi com farinha, logo em meu primeiro dia. Era a comida que tinha. Não achei gostoso, mas já posso dizer que comi. Além disso, experimentei uma espécie de cactus, chamado palma, que normalmente é dado para o gado, mas nessa região se tinha a cultura de comer, visto que em épocas de muita fome, era o que a natureza oferecia a eles. Após passar a chuva, eu e Nego Zau fomos até seu barraco em sua moto. Um pequeno barraco de madeira, sem luz elétrica e com uma mangueira que trazia água vinda direto de uma cachoeira. Fiquei por lá três noites com ele e seu filho João, de 10 anos. O menino mais parecia um homem feito, andando pra lá e pra cá com seu facão e com a cara fechada. Mas em alguns momentos nos divertimos como duas crianças. Comi carne de cágado (espécie de tartaruga), que eles haviam caçado no rio, e visitei a cachoeira que julgo ser a mais linda que já visitei em minha vida, Cachoeira do Herculano. Após essas duas noites, Nego Zau me levou de moto até uma estrada, onde eu iria em direção a casa de Astrogildo, uma outra lenda viva da chapada.

Foi uma caminhada intensa, na maior parte em subida, sob o forte sol do sertão baiano. No caminho, carros não passavam pois as estrada eram muito pedregosas e com travessias de rios em seu trajeto. Foram cerca de 25km que caminhei – com minha mochila de 25kg nas costas – até eu chegar no local errado. Sim, me perdi. Mas me perdi no lugar certo. Cheguei no fim da estrada em uma fazenda, onde dois peões me receberam e, após eu lhes contar minha história, me deixaram passar por lá aquela noite (já estava escurecendo). Me trataram muito bem, comemos comida de roça e conversamos bastante. Um deles, o “Del”, até hoje me manda mensagem, quase toda semana. E essa mesma pessoa me levou, na manhã seguinte, em sua moto, até o ponto mais próximo da casa de Astrogildo. Agradeci imensamente por tudo e segui meu caminho. Dali pra frente, existia uma travessia de um grande rio e uma trilha até eu chegar em meu destino. Pensei ter me perdido de novo mas me achei, quando encontrei uma pequena, muito pequena casa de taipa em meio à mata. E lá estava ele, Astrogildo dos Santos.

 

“Na cidade sou escravo, no mato sou patrão”

FOTO – Astrogildo e sua pequena casa de taipa em meio à mata

 

“Na cidade sou escravo, no mato sou patrão” – essa frase resume um pouco dele. Nascido em Igatu-BA, garimpou com seu pai desde seus 8 anos, passando por todo tipo de trabalho que se possa imaginar. O tipo de pessoa que faz de tudo um pouco, e com proeza. Uma lenda viva  da Chapada Diamantina que habita uma das partes mais selvagens do parque, morando desde os 15 anos isolado de tudo e de todos. Um lugar que muitos ouviram falar mas poucos, pouquíssimos, de fato foram. Tive a oportunidade de ficar alguns dias vivendo um pouco da rotina deste peculiar homem. Certa vez perguntei pra ele: “Tu sabe ler, Astrogildo?”, ele me respondeu:  “Sei, mas só algumas coisas”. Entretanto, sabe ler muito bem o rastro de qualquer pessoa e qualquer animal. “Fulano passou aqui, não faz muito”. Diz ele depois de ver uma marca de sapato em uma trilha. “Esse rastro é de Cobra Cipó criança”. Fala ele depois de passar por uma linha no meio da terra. Sua casa de taipa tem mais ou menos 6m², com apenas um fogão à lenha, sem energia elétrica, sem água encanada. Come apenas o que planta e o que caça. Uma pessoa que consegue te responder qualquer coisa em forma de prosa, repentista de altíssima qualidade. Com ele fiquei 3 noites, vivendo um pouco de sua vida. Lembro saudosamente que, toda noite, entrávamos em seu barraco e, na luz do fogão a lenha, enquanto fazíamos comida, ele contava suas histórias de vida.

Após esse período eu iria para um povoado de outra cidade conhecer algumas cachoeiras, e Astrogildo disse que me levaria por cima das serras, pois seria mais curto. A caminhada seria de mais de 40km e tínhamos que fazer ela em um único dia. Saímos ao amanhecer de seu barraco e começamos a aventura. Foi até hoje o percurso mais longo e doloroso de minha viagem – 40km subindo e descendo serra, em meio a trilhas fechadas com muitos espinhos e cascavéis (vimos 3 no caminho), levando todo peso de minha mochila nas costas. Volta e meia eu parava e me jogava ao chão dizendo que não aguentava mais. Astrogildo era quem me animava para seguirmos. E ao entardecer, depois de já andarmos cerca de 35km, chegamos em um rio. De lá, Astrogildo disse que eu poderia seguir sozinho. Ele me explicou a trilha que eu deveria seguir. Faltavam 7km para eu chegar no povoado. Nesse momento me despedi dele e tirei uma nota de R$100,00 para lhe entregar (afinal, fiquei em sua casa, comendo sua comida e ele ainda me guiou em trilhas sensacionais), mas ele recusou dizendo: “Guarda isso menino, não quero teu dinheiro não”. Como se não bastasse, tirou de sua mochila uma panela, um jogo de talheres e o macarrão que eu mesmo havia levado para sua casa, e me disse: “Tu que tá solto no mundo precisa ter isso contigo, leva”. Eu chorei e o abracei. Vi seus olhos encherem de lágrima, mas o homem é grosso e não chorou, me mandando correr pois estava anoitecendo. E assim me despedi de Astrogildo, que voltou a pé, durante a noite e a madrugada pra sua casa. Ele havia ido até lá apenas para me levar em segurança. Mas a aventura daquele dia ainda não havia acabado. Na semana que vem te conto sobre a primeira vez que acampei no mato selvagem, após ser obrigado a fazer isso… Até lá!

FOTO – Pipe na Cachoeira do Herculano

Publicado em: Turismo






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