DIÁRIO DE MOCHILA – Palhaço por um dia, sem dinheiro e outras histórias em Goiás

Ola! Nessa semana conto de algumas boas histórias, ainda no estado do Goiás, e da mudança mais radical que tive até hoje em meu estilo de vida. Espero que gostem!

21 de agosto de 2022

Palhaço por um dia

Na cidade de Aparecida de Goiânia fiquei na casa de um amigo que havia feito, ainda no Goiás, e tive uma experiência inédita. Esse meu amigo é um artista completo mas, alguns anos atrás, ele entrou no vício do crack. Ficou durante 8 anos vivendo na “Meca do Crack”, em São Paulo. Sem a família nem amigos terem notícia. Muitos pensavam que ele nem mais vivo estava. Eis que um conhecido seu o encontrou em um trem na capital paulista, fazendo uma atuação para ganhar uns trocados e comprar a droga – mesmo totalmente viciado, a forma que ele usava para conseguir dinheiro era a arte de rua. E assim, depois de um tempo ele retornou para o Goiás e parou com a droga. Desde então ele tenta se reerguer e, a forma como ele vem sobrevivendo, é sendo palhaço no semáforo. E tive a oportunidade de passar um dia inteiro com ele, também vestido de palhaço e fazendo “palhacices”, nos semáforos da cidade. Fazíamos umas brincadeiras e após isso, passávamos nos carros pegando os trocados que nos davam. Foi interessante para ver a reação das pessoas. Para eu que por muitos anos andava com meu carro nas ruas da capital gaúcha, foi a forma de eu me sentir do outro lado, como o pedinte. Muitas janelas fechadas e motoristas me ignoraram, assim como as vezes ganhava apenas um sorriso de uma criança. Isso valia mais do que qualquer trocado. Sei que no final do dia juntamos mais de 50,00, o que deu para comprar comida para a janta e para o dia seguinte. Essa era uma batalha diária de Alex.

 

Novos Desafios

 

Eu já comentei por aqui que, desde o início do ano de 2021, as coisas já não me deslumbravam como no meu primeiro ano de viagem. E esse período me causou uma grande confusão. Eu não sabia o que estava acontecendo em minha cabeça, mas sabia que algo precisava ser mudado. Ainda no estado do Goiás, com o tempo, fui entendendo que eu precisava de um novo desafio. Um novo propósito que mudasse radicalmente meu estilo de vida. Considerei várias possibilidades naquele período, mas teve uma que já flertava comigo fazia um tempo e que, sinceramente, me faltava coragem de realizar. Como vocês já sabem, eu tinha uma boa quantia guardada comigo, que me dava uma super tranquilidade. Mesmo assim, eu sempre buscava gastar o mínimo possível, mas não deixava de usar e sobreviver desse dinheiro. E foi assim que decide que, por 15 dias, eu não poderia usar meu dinheiro para nada. Poderia ganhar dinheiro da forma que fosse, mas o que eu tinha guardado não podia ser mexido. Se fosse necessário passar fome, eu passaria. Seria uma experiência e tanto que eu sentia que mudaria e muito a visão da minha viagem.

 

15 dias sem dinheiro

 

O início da minha experiência foi na cidade de Goiás Velho (antiga capital goiana), na casa de um amigo. Estadia eu não estava pagando e comida no primeiro dia ele me deu. Eu sabia que precisaria mais cedo ou mais tarde de dinheiro, então tinha que criar alguma forma de arranjar ele. Foi quando decidi fazer palhas italianas (doce) e vender nas ruas da cidade. Foi uma experiência sensacional! No início fiquei muito nervoso e inseguro. Mas após vender a primeira e a segunda, a segurança vem e tudo começa a fluir. Eu não vendia o doce, e sim, minha causa, minha história. Era difícil alguém que não comprasse (normalmente quando acontecia, era um diabético). As vendas me rendiam um lucro de 50,00 diários. Fiz isso por lá durante 4 dias, o que me rendeu uma boa reserva de dinheiro para os próximos que viriam. Nessa época também eu comecei a cortar mais o meu consumo de bebidas alcoólicas. Eu já estava cada vez bebendo menos, mas nesse desafio, gastar com álcool significava eu gastar um dinheiro que poderia me matar a fome no futuro, então não bebia.

Saindo de Goiás Velho, fui em direção a Chapada dos Veadeiros, pois eu queria passar por lá antes de deixar o Goias e entrar no próximo estado que eu conheceria. Mas o caminho era longo. Com o dinheiro que eu tinha na carteira, não poderia me dar ao luxo de pagar para dormir em algum lugar. Foi quando aprendi de verdade a dormir com minha barraca pelos cantos. Nos primeiros três dias de estrada, dormi em postos de gasolina. Local onde normalmente se aceita colocar barraca em algum canto, com banheiro e banho disponível. Um verdadeiro hotel. E de quebra, dependendo dos funcionários do posto, eu ganhava refeições, o que me fazia economizar muito. Aprendi também a pedir comida. Criei a técnica de chegar em um restaurante (normalmente os maiores com self service/buffet) já pelas 15h, e pedia algum resto de comida. Normalmente me deixavam entrar e comer a vontade.

FOTO – Pipe em Goiás Velho

 

 

Parada tensa pela polícia 

 

Dentro desses 15 dias, minha melhor história se passou em Minaçu, no extremo norte do Goiás. Essa (não tão pequena) cidade possui uma praia de rio, por onde fiquei por umas horas em minha rede após comer uma marmita que havia ganhado. Ninguém estava por lá, apenas eu. Eis que, já saindo da praia, vejo um carro da polícia se aproximando em alta velocidade. Ele parou muito próximo a mim, numa derrapada, e dele saíram 4 policiais com seus fuzis em mãos dizendo: “No chão! No chão!”. E assim me joguei no asfalto quente e fiquei esperando o próximo passo. Era a polícia de choque do Goiás. Friso que eu estava com minha grande mochila e minhas roupas já faziam tempo que eram as mais rasgadas possíveis. Eu já havia inclusive adquirido o costume de não comprar mais roupas, apenas pegava aquelas mais velhas de pessoas que iam cruzando meu caminho. Ou seja, o tipo de pessoa que chamava muito a atenção onde passava.

Eles me revistaram e começaram a me fazer perguntas. De todos os tipos. E eu ia respondendo com toda minha sinceridade e calma. Eles usavam aquela técnica policial de fazer perguntas com rapidez para ver se te pegam na mentira. Mas eu só falava a verdade, então eu estava vencendo. Uma hora o comandante me perguntou porque eu estava viajando dessa forma. Eu disse pra ele meio que rindo: “Amigo, a história é longa viu? A gente deveria sentar num bar e tomar umas pra que tu entendesse com calma”. Acho que ele ficou irritado, mas ao mesmo tempo vendo que eu não estava mentindo. Foi quando ele mandou um dos seus colegas revistar minha mochila. E eu jogado no chão. Eis que escuto: “Senhor, achei um pó branco numa sacola”. Pensei na hora: “Eles estão armando pra mim. Colocaram cocaína em minha mochila pra ter um pretexto pra me prender. Ferrou”. O comandante, num certo tom de vitória disse: “E aí Senhor Felipe, que pó branco é esse em sua mochila?”. Eu disse que não sabia do que se tratava. Até que o outro policial disse: “Senhor… Isso é açúcar”. E me lembrei de ter deixado um resto de açúcar, das palhas que eu havia feito nos últimos dias, dentro de uma sacola. Falei: “Eu faço doces pra vender na rua, pessoal. Esse é o açúcar que uso”. Todos começaram a rir e, literalmente, se desarmaram. Me pediram para se levantar e se desculparam. Entenderam que eu era uma pessoa de bem, um viajante. Me confessaram que receberam uma denúncia anônima que um doido com uma mochila gigante com um facão pendurado (eu) estava indo em direção à praia. Ri junto com eles e disse que, no final, tinha achado a experiência interessante. Foi a primeira batida policial que passara em minha vida. Conversamos mais um pouco sobre minha vida e eles me deram carona de volta a cidade. Dizendo que eu não sabia onde iria dormir, me levaram até os seus colegas bombeiros, onde passei uma noite dentro do batalhão. O chefe dos bombeiros ainda me deu R$ 20,00 para eu jantar pela rua e, no dia seguinte, me deram carona até a saída da cidade para eu seguir viagem.

Em resumo, esses 15 dias me trouxeram um novo significado para minha jornada. Entendi que eu tinha capacidade de viver sem usar meu dinheiro, mas não abdiquei dele. Porém, uma das coisas que mantive em minha viagem é de não gastar com estadia. A partir daí meu estilo de vida deu um giro de 360 graus. Essa foi a mudança mais significativa que tive até hoje. Muda completamente tudo. Eu passei a estar muito mais próximo do povo, que era o que eu buscava. Próximo de relações que não envolviam dinheiro, que eu julgava mais real. Minha visão de mundo e de sociedade começaram a mudar drasticamente. Eu amei isso. Tanto que mantenho esse princípio mais do que vivo comigo até hoje. E era o que estava faltando para mim naquele momento. Eu me sentia renovado, revigorado. Como se minha viagem estivesse apenas começando. Tudo passou a fazer sentido de novo.

Na próxima semana, vou te contar sobre a experiência antropológica mais inesquecível que tive até hoje em minha viagem, ao passar 10 dias no maior território quilombola do mundo. Até lá!

 


Publicado em: Turismo






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