DIÁRIO DE MOCHILA – Percepções sobre Jericoacoara (em busca do equilíbrio)

Buenas! Na última edição falei dos meus preparativos psicológicos para voltar a passar um tempo em um local turístico, na famosa Jericoacoara no litoral do Ceará. Hoje falo de minhas primeiras percepções por lá e de como consegui encontrar meu equilíbrio. Boa leitura!

26 de março de 2023

O lado obscuro de Jeri

 

Um dos lugares do Brasil onde o turismo mais pulsa. Talvez, puramente dizendo, o local mais turístico do país. Onde tudo, absolutamente tudo gira em torno desse segmento. Um shopping a céu aberto. Lojas, as vezes de altíssimo nível, enfileiradas pelas suas ruas e becos. Consumismo e mais consumismo. Restaurantes especializados nas culinárias de todas partes do mundo. Luzes, muitas luzes. Festas para todos os gostos. E drogas também. Muitas drogas. E por fim, pessoas. Milhares de pessoas. De todos lugares do mundo. Para consumir tudo isso. Um local que um dia (bem distante) já foi uma pacata vila de pescadores. Forma como algum estabelecimentos de la ainda ousam nomear Jericoacoara. Minha mãe visitou Jeri nos anos 70. Ela me disse que para dormir se tinha que colocar redes nos coqueiros. E para comer, achar algum pescador que ajudasse.  Isso sim pra mim é uma vila de pescadores. Hoje, 50 anos depois, com presença de estátuas romanas, carros que parecem do filme Mad Max, e até um exemplar das Lojas Americanas, Jeri já deixou de ser uma vila de pescadores há muito tempo. Vejo como uma vila de excessos. Uma forma de deixar o turista que a está visitando mais confortável. Trazer os excessos que ele está acostumado em seu dia a dia em grandes cidades para o seu local de férias também. E com uma grande camada de maquiagem. Praticamente 100% do esgoto tratado. Fios não se encontram por lá, absolutamente tudo subterrâneo. Criminalidade não existe. Por ordem da facção criminosa que comanda o território. Quem rouba por lá não se safa. Rapidinho é despejado (ou coisa pior). Assim como as regras de boa parte das favelas do país. Até o consumo de crack é proibido. Interessante isso. Essa é a única droga que os traficantes não permitem por lá. Acredito ser por todo efeito que ela causa. Uma alta dependência seguida de roubos, moradores de rua e pedintes.

 

Para gringo ver

 

Daí talvez tu vá me dizer: “Esgoto tratado, fios subterrâneos, zero criminalidade… O que isso tem de ruim, Felipe?”. Cruamente falando, não tem problema nenhum. Pelo contrário. Isso passa a tornar esse lugar uma espécie de realidade paralela dentro do Brasil. Um verdadeiro paraíso. Mas minha certa revolta, quando cheguei em Jericoacoara e notei tudo isso, foi saber que a próxima cidade, a poucos quilômetros de distância, apesar de tão perto, estava muito longe dessa realidade. Esgoto a céu aberto, emaranhadas de fios para todos os lados, alta taxa de criminalidade e pessoas, as vezes, passando fome. A dura realidade do nordeste. E qual a grande diferença entre essas duas localidades? O turismo. Todo esse cenários construído em Jericoacoara nas últimas décadas foram feitos para o deslumbrar o turista. Aquele que vem do sul e sudeste do país ou, em boa parte dos casos também, que vem de fora do país. Todo esse conforto utópico para quem não é de lá, enquanto quem vive ao lado, mas longe de todos esses visitantes de fora, se contenta com a realidade do Brasil. Como eu disse para muitos gringos que por lá conheci: “Jericoacoara não é o Brasil”. E tudo isso que acabei de relatar, é apenas minha opinião sobre essa parte mais relacionado ao sistema de lá.

Visto meu estilo de caminhada nos quase últimos três anos, mais afastado de grandes centos turísticos, essa foi minha primeira percepção de Jeri. Logo nos primeiros dias. Foi um baque muito grande, mas ao mesmo tempo não, pois eu já estava psicologicamente preparado para isso antes de chegar. E talvez tu também te pergunte: “Se achou tudo isso de Jeri, porque ficou tanto tempo por lá?”. Olhando apenas assim, soa meio (bem) hipócrita. Porém, para mim Jeri não foi apenas essa percepção mais revoltante. Resolvi começar pela parte mais pesada no início para depois chegar na parte boa. A parte que fez eu me conectar com Jeri e que justificou meus quase 20 dias por lá.

 

Natureza

 

Uma das coisas que eu já estava muito habituado em minhas rotinas era de estar próximo da natureza. E por lá, havia uma natureza exuberante. Um local com tamanho turismo tem que justificar o início disso tudo. E geralmente a resposta vem na natureza. Praias e cenários que fogem do padrão nordestino. Por ser um parque nacional, muitas vezes locais bem preservados. Locais que me possibilitaram ter meus momentos de conexão comigo mesmo e com a natureza. E um por do

Sol alucinante. O por do sol do Ceará já provava para mim mesmo ser o mais diferenciado do país. Mas Jeri de destacou mais ainda. Acho que pelo fato de, por lá, o grande astro rei desaparecer atrás do oceano. Algo absolutamente raro na costa brasileira, onde na grande maioria dos casos o sol nasce no mar, e não se põe lá. Todo final de tarde por lá era mágico.

Pessoas

FOTO – Pipe e amigas francesas em Jeri

 

Além disso, outro grande diferencial de Jeri para mim foram as pessoas. Primeiro por, pelos últimos meses, onde a solidão batia cada vez mais forte dentro de mim, eu simplesmente saber que eu tinha algum tipo de companhia por ali. Isso me aliviava. Eu estava morando em um hostel, local que recebe viajantes de todas partes do país e do mundo. E o tipo de viajante que aceita dormir em hostels já parte do princípio de ter uma mente mais aberta. E, muitas vezes, são viajantes que, assim como eu, estavam a algum tempo na estrada. Pessoas que eu podia compartilhar conhecimentos de uma forma mais franca. E treinando um pouco do meu tão limitado inglês. Eram épocas de bons ventos no Ceará, o que atrai um enorme público de europeus interessados em praticar o Kitesurf. Na maior parte, franceses, italianos, alemães e suíços. Em alguns momentos era difícil se ouvir alguém falando português pelas ruas de Jeri. Fiz amizades, tive parcerias para dar caminhadas, sair à noite ou simplesmente para ir almoçar. Algo que eu não sabia mais o que era. E que me mostrou quanto eu estava precisando disso.

 

Trabalho

Por fim, o último grande ponto que Jeri de diferenciou para mim foi o de me ocupar. Já faziam quase três anos que eu não tinha uma rotina de trabalho. Ok, algumas poucas vezes fiz algum tipo de troca de trabalho por teto em minha viagem, mas dessa vez foi mais continuo. Como expliquei em minha última edição, eu estava sendo um voluntário no hostel. Basicamente, faxinava o espaço durante 4 horas por dia em troca de uma cama para dormir. E acordar sabendo que entre as 10h e 14h eu tinha que estar trabalhando, me fez muito bem. Primeiro por que me deu um tipo de rotina. Segundo, porque eu simplesmente estava fazendo alguma coisa de útil para algo maior. Uma sensação de fazer parte de algo. Coisa que eu já não entendi há alguns anos. E terceiro e por fim, porque meus momentos de lazer passaram a se tornar muito mais especiais. Os banhos de mar que eu tomava após minhas horas de faxina foram os melhores dos últimos anos. Antes, era só mais um mergulho dos vários que eu dava durante todo o dia, quando eu bem entendia. Agora não, eu valorizava aquele momento. Assim como meu único dia de folga na semana que eu pensava: “Uau! Eu tenho dia inteiro para aproveitar!”. O que muito rapidamente me fez entender que, mesmo sem saber ao exato qual seria meu futuro, trabalhar me faria bem.

 

Rotina

Esse foram os pontos que se destacaram para mim em Jericoacoara. Nos 20 dias que passei por lá, procurei encontrar o melhor equilíbrio possível em minha rotina. Depois de muito tempo eu tive uma rotina. Isso também aliviou bastante minha alma. Quando temos uma rotina temos mais controle sobre nosso futuro. E na minha jornada, controle sobre meu futuro era algo inexistente. Na maioria dos casos, eu acordava em alguma cidade sem ter a mínima ideia de em qual cidade eu dormiria naquele novo dia. Quem dirá onde seria exatamente. Num posto de gasolina, no meio do mato, em cima de uma serra, na praça da cidade, dentro da prefeitura, na casa um local, dentro de um caminhão… enfim, eu me propus a isso. E era mágico. Pelo menos foi por muito tempo. E Jeri me mostrou como esse controle do meu micro futuro estava me fazendo bem. E eu aceitei isso de braços abertos. Eu apenas queria me sentir bem depois dos últimos meses de grandes confusões em minha cabeça.

 

Equilíbrio

 

E dentro dessa rotina que criei, entendi que eu precisava dos meus momentos comigo mesmo. Estar sozinho fazia parte de minha “rotina” em minha viagem. E morando em um hostel, momentos de solidão são difíceis. Sempre se está cercado de pessoas. Então, os finais de tarde passaram a ser meus momentos de fuga daquele meio. Era quando eu voltava um pouco para meu estilo de vida de até então. Achei um cantinho especial em cima do Morro do Serrote (um belíssimo morro com natureza intocada) onde, normalmente, ninguém passava por perto no entardecer. Era quando eu desligava e focava apenas em mim e no momento. E no surreal por do sol de todos os dias. Momento que entendi ser essencial para o meu bem estar nessa minha “volta” ao sistema. Momento que trouxe o equilíbrio que eu precisava. E que me fez entender que voltar o sistema de alguma forma não precisava ser algo tão difícil. Em resumo, toda aquela parte de Jeri que não me fazia bem e que, de uma certa forma, eu não era compatível, fiquei afastado. Aproveitei apenas a parte que me fazia bem. Natureza, pessoas, trabalho e rotina. Assim eu consegui manter uma relação de paz com aquela ilha de consumismo. Jeri foi um pequeno mas grande teste para minhas novas decisões futuras que se aproximavam.

Na próxima semana, vou entrar mais no detalhe desse meu período de Jericoacoara e de como ela de fato veio a alterar completamente meu futuro. Até lá!


Publicado em: Turismo






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