DIÁRIOS DE MOCHILA – Pé na estrada, amizades, solidão e solitude

Olá! Na semana passada contei um pouco da minha história e da virada de vida que dei para sair viajando o mundo. Hoje a ideia é começar a mostrar para vocês alguns dos pontos principais da minha viagem até hoje, passados já 2 anos e meio. São pontos importantes que retratam histórias marcantes e tudo que me fez ir mudando ao longo desses últimos meses. Espero que gostem!

25 de junho de 2022

5 anos viajando o mundo, o primeiro ano sendo no Brasil. Essa era minha ideia inicial quando sai. Doce inocência de querer colocar planos numa vida solto pelo mundo… Eu havia guardado um valor em dinheiro para essa jornada e tinha uma ideia de quanto poderia gastar por dia no máximo. Eu faria tudo por terra, sem usar avião. Mas faria isso de ônibus ou através de app de carona pagos (BlaBlaCar). Minhas estadias seriam em hostel, ou qualquer outro lugar de preço acessível que eu tivesse uma cama para dormir. A alimentação, em restaurantes com preço mais em conta. Como eu ainda bebia, o álcool também entraria nessa conta, junto com passeios e atrações em geral dos lugares que eu fosse visitar

Quando sai de Torres, no dia 27 de janeiro de 2020, sai com uma mochila gigante cheia de roupas e acessórios. Já refletia um pouco a cabeça de quem não estava acostumado a viajar dessa forma. Várias e várias camisetas, bermudas, 3 calças diferentes, 3 pares de tênis, blusões e diversos outros itens. Sai até com meu relógio Armani. Eu diria que era um minimalismo mais Nutela. Com o tempo, fui entendendo que aquilo tudo não me representava mais. Mas foi a viagem quem foi me sinalizando isso..

 

Floripa, Ilha da Magia (o inicio)

 

Minha primeira parada foi em Florianópolis. Cidade que já conhecia, mas não tão a fundo. Por lá já tive duas grandes novidades nos primeiros dias: consegui um voluntariado (trocar serviço por teto e comida) e a estadia era em uma barraca. Novidades para quem nunca havia voluntariado nem entrado em uma barraca. Isso já fazia parte da minha proposta de experimentar o novo. Em minha “antiga vida”, quando me convidavam para acampar eu dizia que não gostava, sem nunca ao menos ter acampado. Vai entender…

A experiência de voluntariar foi sensacional. Era um local muito simples, em meio à mata Atlântica na praia de Naufragados. Uma praia sem estrutura nenhuma, apenas muita natureza e alguns pescadores locais. Lavei louça, fiz trabalhos de jardinagem, reaproveitamento do lixo, dentre outras funções. Atividades completamente novas para uma pessoa que passou sua vida profissional dentro de escritórios e salas de reunião. Fiz um grupo de novos amigos com novos pensamentos. Tive contato com pessoas muito simples e já ali, aprendi que poderia aprender muito com elas. Dou destaque maior ao Fabinho, nativo da praia e uma das pessoas mais inteligentes que já conheci. Criamos uma conexão muito grande. Fazia de tudo um pouco e tinha um coração gigantesco. Porém, tinha sérios problemas com crack. Convivi com algumas de suas crises de abstinência e em uma oportunidade lhe dei R$ 50,00 para ele comprar a droga no centro da cidade, mas com a condição de que ele a usaria em Naufragados, próximos a nós. Ele fez isso. Lembro que ele dormia na barraca ao lado da minha e por algumas noites, ouvia seu isqueiro e suas tragadas antes de dormir. Foi a primeira vez que tive mais proximidade com essa droga, o que me fez ver o quão ela pode destruir uma mente e uma vida.

A grande descoberta que fiz nesse período foi de que amava acampar. A barraca que fiquei por lá nesse período não era minha, era do dono do local (meu hoje grande amigo Dani). Mas ao sair de lá, minha primeira parada foi em uma loja especializada em produtos de camping para comprar minha barraca, colchão e saco de dormir. Obrigatoriamente tive que liberar (muito) espaço em minha mochila para que esses equipamentos entrassem. Ali eu já tinha meu primeiro desafio de desapego, ao doar muitas roupas. Fiz isso porque além de ter gostado de dormir em uma barraca, entendi que eu poderia baratear bastante minha viagem parando em campings, que normalmente tem preço muito mais em conta do que outras opções de estadia. Outro grande exercício de desapego foi me despedir dos amigos que fiz por Florianópolis mas, acima de tudo, do ambiente confortável que eu me encontrava. Confortável no sentido de pessoas, amizades, rotina e ambiente. Aquele lugar que, quando cheguei, era uma total novidade pra mim em todos os sentidos, com o passar do tempo foi se tornando cômodo. Do medo para a empolgação, da empolgação para o comodismo. Entender isso, e que o novo fazia parte dessa minha nova vida, me fizeram pegar minhas coisas e sair de lá, indo em direção ao litoral do Paraná. Comodismo não fazia mais parte da minha jornada.

 

FOTO – Pipe e Fabinho em Naufragados, Florianópolis

 

Prazer, Coronavírus

 

Após ficar cerca de 10 dias no litoral paraense, fui em direção ao litoral sul de São Paulo. Como minhas últimas semanas foram totalmente sem acesso a televisão, eu estava por fora dos acontecimentos do mundo. Sabia que um vírus tava dando um trabalho em alguns países e havia chegado ao Brasil, mas nada mais do que isso. Eis que, ao chegar em Santos e ir até um hostel para me instalar, recebi a notícia de que tanto o hostel, como qualquer outro estabelecimento comercial da Baixada Santista, fechariam a partir do dia seguinte. Ou seja, ferrou… Precisava ir embora no dia seguinte. Mas para onde? Pesquisei e vi que a tal Baixada Santista terminava na cidade litorânea de São Sebastião, quando começava o litoral norte paulista. Lembro que ainda pensei: “Esses políticos da Baixada Santista estão loucos, que grande bobagem fechar todas as cidades por causa desse vírus. Vou para um lugar normal”. Peguei um ônibus no dia seguinte cedo, quando já vi que as coisas não estavam normais. Alguns ônibus não estavam mais saindo, pessoas lotando supermercados, trânsito trancado… Parecia cenário de filme apocalíptico. Cheguei a olhar para o céu pra ver se não estavam caindo meteoros de fogo ou algo do gênero.

Cheguei então na praia de Juquei, já pertencente ao município de São Sebastião. Ou seja, fora daquela Baixada Santista maluca. Desci do ônibus aliviado e caminhei até um camping que eu havia achado na internet. Lá, uma senhora, Dona Marisa, me recebeu e me deu a bela notícia de que o litoral norte de São Paulo também havia tomado a mesma decisão. Ou seja, ferrou de vez agora. Um pouco mais tarde, o governador de São Paulo decretou lockdown em todo estado, e foi aí que eu comecei a ver que a coisa estava ficando séria. Meio desnorteado, expliquei minha situação para Dona Marisa que, teoricamente, não poderia me receber. Os lugares que seriam mais visados, inclusive, seriam os da área turística. A ideia era que apenas os moradores ficassem nas cidades. Mas combinamos que eu colocaria minha barraca por lá, meio escondida e, caso alguém perguntasse, eu era sobrinho dela. Agradeci demais e me aliviei. Ficar na rua eu não ia ficar.

No dia seguinte a minha chegada, fui à praia para refletir sobre o que iria fazer. Uma pandemia havia estourado e o mundo inteiro estava se fechando, sem previsão de quando isso acabaria. Volto para o sul, ou ignoro tudo e sigo na estrada? Não existia previsão para nada. O que diziam é que as coisas só iriam começar a voltar ao normal com uma vacina, que tinha previsão mínima de 1 ano. Recentemente eu havia passado por todo baque de mudança de vida e voltar para o sul poderia me jogar para o fundo de novo. Como Dom Pedro disse em 1822, falei para mim mesmo: “Eu fico!”. Sabia que iria passar por momentos de muito sofrimento, solidão e iria enfrentar diversas barreiras. Mas meu instinto disse que isso seria bom, que me traria um grande crescimento e evolução espiritual. E assim começaram as semanas mais isoladas de minha vida…

Solidão e Solitude

 

Pipe e Dona Marisa – que lhe deu abrigo ‘clandestinamente ‘ em meio ao lockdown no litoral paulista

 

Após tomar minha decisão, fiquei 15 dias na casa de Dona Marisa, em Juquei, que havia me acolhido, e depois mais 15 na praia de Maresias, onde um camping também me aceitou com a condição de ficar escondido e sendo parente do dono (caso alguém perguntasse). Nos dois casos, apesar de estar em locais onde outras pessoas moravam, o isolamento existia e a comunicação era pouca, quase nada. Após isso, fiquei 30 dias em Ubatuba, em uma casinha toda minha que consegui alugar por um valor irrisório. Ali o isolamento foi total. Mas muito bom voltar a ter uma cama – pelo fato de que já faziam quase 90 dias que eu dormia apenas em barraca.

Eu estava no litoral norte paulista, considerado um dos mais paradisíacos do país. Por decisão de decreto, as praias estavam “fechadas”, como aconteceu em toda costa brasileira. Mas pensei: “Uma praia não pode ser fechada, ela não tem porta. Vou bater pé por aí e conhecer esses paraísos”. Foi assim que comecei a desbravar cada uma das praias da região. Sempre sozinho, isolado e caminhando. As linhas de ônibus das cidades não estavam circulando devido à pandemia. E foi nesse período que comecei a aprender a caminhar de verdade. Em alguns dias cheguei a bater mais de 25km nas idas e vindas por trilhas ou estradas nessas praias. Entre São Sebastião e Ubatuba, foram mais de 60 que visitei nos 60 dias em que passei por lá. Cenários surreais em que eu estava sempre sozinho. Olhava para um lado, para outro, e só via areia, lindas paisagens e aquele mar deslumbrante. Mas nesse período, minha maior lição foi a de aprender a ficar sozinho. Aprender a diferença entre a solidão e a solitude. Solidão o próprio nome já diz. É se sentir sozinho, sem ninguém. Isso causa sofrimento, tristeza, carência e confusão. Por muitas vezes chorei sentado na areia, pensava em voltar atrás. Mas com o tempo fui conhecendo a solitude, que nada mais foi do que aprender a estar na minha própria presença e degustar isso. Me conectar com a natureza e comigo mesmo. Comecei a ter conversas super complexas comigo mesmo e ver como isso me fazia bem. Por diversas vezes, em praias mais isoladas, ficava pelado, como vim ao mundo. Aos poucos, fui entendendo que havia tomado a decisão certa. Isso já estava me mudando como pessoa, e iria ainda mais.

Outra coisa que esse período me proporcionou foi aprender a cozinhar. Eu mal sabia cozinhar um ovo antes de sair. Mas o contexto me forçou a ir para a cozinha, que era como eu me alimentava em praticamente todos os casos.

Por último, aprendi a fugir de fiscalização. Como as praias não podiam ser acessadas, existiam fiscais que giravam aleatoriamente entre elas e, em duas ocasiões fui pego (de longe), mas fugi. A mais engraçada foi na praia de Camburi. Eu estava sentado admirando o mar e as pedras, totalmente sozinho, quando avistei dois fiscais vindo em minha direção. Eu estava em um trecho sem saída. Para sair da praia, ou ia em direção a eles, ou ia para o outro lado, onde eu teria que atravessar um rio que dava acesso a uma outra praia. Eu sei nadar muito bem, mas estava com minha mochila que carregava carteira, celular, dentre outras coisas que eu não podia molhar. Mas não pensei duas vezes. Ergui minha mochila em uma das mãos e entrei naquele rio, que descobri que era bem fundo. Mas nadei como uma capivara que foge de uma onça e alcancei o outro lado. Quando olhei para trás, os dois fiscais me olhavam com um certo olhar hostil e gritavam coisas que não conseguia escutar, mas que não deveriam sem boa coisa. Corri em disparada para a saída da praia e me escondi dentro de uma farmácia, pois sabia que eles viriam atrás de mim. Meio escondido atrás de uma das gôndolas da farmácia, vi o carro deles passado e me aliviei. Depois dei muita risada da situação com o farmacêutico, que me acobertou, voltei sem nenhuma multa.

E vocês devem se perguntar: “Mas Felipe, tu não ficou com medo do vírus?”. A resposta é sim e não. Nas primeiras semanas eu estava meio paranoico. Psicologicamente, em alguns momentos achava que estava com Covid-19. Mas era só o medo e a minha mente me pregando peças. Eu ainda estava consumindo muitas informações sobre o que estava acontecendo, isso estava me desequilibrando. Com o tempo, fui me afastando de qualquer assunto que fosse relacionado à Covid e entendendo que, se eu quisesse seguir mesmo minha jornada, não poderia seguir com medo. E assim meu medo e paranoia foram sumindo. Ajustei meu estilo de vida com uma boa alimentação, sono regrado, muita água, exercícios e sol, muito sol. Aos poucos fui acreditando que seguindo assim, eu estaria livre desse e de qualquer  outro vírus. Nossa mente é muito poderosa e é quem rege nosso corpo. Ela deveria estar bem, acima de tudo. Claro que sou jovem, sem comorbidades e estava sempre sozinho. Isso facilitou e muito a minha forma de ver as coisas. E foi assim que segui e sigo até hoje em meu dia a dia. E me fez aprender que viver com medo, independente da situação, não é sadio nem natural para nós. Mexe com nossa cabeça e consequentemente com nosso corpo.

 

FOTO – Final de tarde em Ubatuba

 

Atravessando fronteiras ilegais

 

Minha próxima parada séria no litoral sul do Rio de Janeiro. Iria para a casa de uma amiga gaúcha que morava em Angra dos Reis. No caminho ainda havia o município de Paraty, que eu sempre quis conhecer, mas todos diziam que a fiscalização por lá estava muito forte. Então teria que deixar para outra oportunidade.

Minha saída do litoral norte de São Paulo foi uma pequena aventura. Como as fronteiras entre os estados estavam teoricamente fechadas, onde apenas moradores com comprovante de residência podiam passar, tive que me adaptar a situação. Existia um trajeto de cerca de 10km da estrada Rio-SP, exatamente na fronteira, que estava sem linha de ônibus. Decidi ir caminhando (até porque não tinha outra opção) e, pela primeira vez em minha vida, tentar uma carona. Dessa vez eu estava com minha mochila, que pesa cerca de 25kg. A caminhada se tornaria mais difícil. Lembro que quando comecei a chuva veio com força. Quando via que algum carro se aproximava, levantava o dedo e abria um sorriso. Mas dar carona no Brasil normalmente já é algo raro. As pessoas tem um medo natural, que naquele momento estava aliado a um novo medo de um vírus mortal. Porém nem todos pensam da mesma forma. Um caminhão parou para mim. Fiquei super empolgado, minha primeira carona! Na hora eu entendia que fazia aquilo por falta de opção, mas alguns meses pra frente essa prática se tornaria minha única forma de se locomover pelo país. Mas isso é assunto mais pra frente…

O caminhoneiro iria entrar em um bairro no início do municio de Paraty e me deixou por lá. Me explicou que existia um único transporte público que passava no período da tarde, mas ele não sabia quando. Ainda era manhã quando cheguei por lá. Fiquei numa parada de ônibus por mais de 5h, tentando desviar da pesada chuva que caía, até que o tal do transporte chegou. Era uma pequena van, que estava fazendo a linha até o centro da cidade. De lá, eu ainda teria que pegar outra van que me deixaria na fronteira com o município de Angra, meu destino. Ao entrar, o silêncio tomou conta de todos. Eu, com cara de gringo e uma mochila gigante. Impossível dizer que eu era um morador local voltando do trabalho. Senti uma certa hostilidade no olhar dos passageiros. Afinal, uma pandemia havia estourado há 2 meses e o turismo estava fechado. O motorista perguntou pra onde eu iria, e expliquei. Em uma momento ele deve ter pensado em me pedir pra descer, mas disse: “Irmão, fica abaixado e escondido, tu e tua mochila. Vamos passar pela barreira fiscal. Se eles te verem, te levam pra delegacia e eu perco meu emprego. Não te mexe!”. Concordei e assim fiz. Fiquei meio deitado no chão, espremido com minha mochila. Passamos pela fiscalização, tudo certo. Ao chegar no centro, a van parou e o motorista disse: “Não te mexe, continua escondido”. Os passageiros saíram e por ali fiquei, até ele me deixou explicar em baixa voz: “Aqui tem fiscais por tudo. Tu não pode descer nem aparecer. Mandei mensagem para o motorista da outra van e ele vai encostar rente a minha. Quando ele chegar, ele abre a porta e tu entra rápido e continua escondido, ok?”. Concordei mais uma vez e fiz o pedido. Quando ela chegou, em um movimento rápido, pulei de uma van para a outra como um sapo. Por lá fiquei escondido por mais uns 30min até que passageiros começaram a entrar para a partida. Obviamente, me olhando sem entender absolutamente nada. Me senti um mexicano tentando atravessar as fronteiras dos EUA. Ou James Bond em uma missão secreta.

Quando já anoitecia, cheguei em Angra dos Reis, cidade em que as coisas estavam mais tranquilas. Por lá fiquei cerca de 3 semanas, na mesma batida de conhecer praias da região. Porém, ao chegar em casa tinha a companhia de minha amiga que já mudava a situação anterior. Aos poucos os momentos sozinhos iam diminuindo e ficaram ainda melhores quando cheguei na cidade maravilhosa. Mal sabia eu que essa próxima parada me faria vir a morar em uma favela e embarcar em um veleiro com dois gringos para seguir minha viagem. Mas isso é assunto pra próxima semana… até lá!

 

 


Publicado em: Turismo






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