Entrevista: DA EXPERIÊNCIA CUBANA AO BRASIL

22 de abril de 2014

 

 

A FOLHA ENTREVISTA: Gérman Andres

(Médico uruguaio, no Passo de Torres pelo programa Mais Médicos)

 

 

O uruguaio German Andres Balderrin Giambiaggi “ filho de pai descendente de bascos e mãe descendente de italianos – me recebe em seu apartamento aqui em Torres, para uma entrevista. Amistoso e interessado, ele me recebe com um mate, tradição que (provavelmente) é ainda mais uruguaia do que gaúcha. German tem 26 anos, é natural de Salto (noroeste uruguaio, fronteira com Argentina) e chegou em nossas bandas para trabalhar como médico, através do programa federal Mais Médicos.

Ele fez sua faculdade em Cuba, onde viveu por 6 anos, e agora é clí­nico geral na Unidade Básica de Saúde (UBS) no centro do Passo de Torres (SC). Apesar do sotaque, seu português é quase fluente, o que se explica pela relação próxima que sua famí­lia já tinha com o Brasil previamente (a mãe vive em Florianópolis). E com o jornal A FOLHA, German conversou sobre sua experiência no mundo socialista cubano, sua participação como médico comunitário do programa Mais Médicos e algumas filosofias de vida.

 

 

Por Guile Rocha

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A FOLHA – Você Fez faculdade em Cuba. Fale um pouco de sua experiência com a medicina, antes de chegar ao Brasil.

 

GERMAN – Fiz faculdade em Cuba, o que foi uma experiência muito boa. Quando sai do secundário no Uruguai, com 18 anos, a oportunidade de ir para Cuba apareceu “ a partir de uma federação de estudantes universitários – e não pensei duas vezes. Lá passei seis anos estudando medicina. Minha famí­lia custeava minha estada, mas faculdade e os materiais eram de graça, não se pagava matrí­cula. No ano que fui, outros 90 estudantes uruguaios também foram. Conheci gente de vários paí­ses: mexicanos, Venezuelanos, brasileiros, norte americanos. Colegas que hoje estão espalhados pelo mundo, trabalhando em diferentes paí­ses.  

A medicina familiar, preventiva, aplicada por outros paí­ses do mundo se baseia muito na medicina cubana. Foi um projeto criado há muito tempo atrás e que vingou por lá. Convivemos bastante com este conceito, baseado num médico de famí­lia que mora e está totalmente integrado na comunidade. í‰ um médico, mas também conhece a vida de todos em sua vizinhança, que é seu local de trabalho e de onde vêm seus pacientes.   Em Cuba a saúde está como um direito universal, baseado no humanismo, e que é totalmente respeitado.

 

Como foi viver em um paí­s polí­tica e economicamente declarado socialista? E a relação do cubano com o regime?

 

Uma experiência diferente. Era mais fácil de comprar lá em Cuba, pois havia menos variedade. Daí­ se só há um tipo de papel higiênico, por exemplo, fica mais fácil de escolher (risos). Há o problema da liberdade, mas liberdade é um conceito muito relativo, mais complexo do que se imagina. O que é liberdade para você não é necessariamente o mesmo que para mim.

O cubano tem uma percepção diferente sobre o mundo, mas há cubanos satisfeitos e insatisfeitos com o regime, com umas coisas e outras. O cidadão de lá se queixa também, pois a natureza do ser humano é sempre questionar. Porém, certamente brigar (ou questionar) com o governo cubano é difí­cil, pois o socialismo muito dogmático, baseado em ideias muito antigas e arraigadas. O Fidel Castro, por exemplo, é um personagem que representa muito para os mais antigos, e uma figura respeitada no geral, e o seu irmão Raul (atual lí­der do regime) também.

 

Se possí­vel, nos fale sobre alguns costumes de Cuba que você observou/vivenciou.

 

Percebi que a religião católica é forte em Cuba, e há também uma sincretismo com as religiíµes afro (uma vez que os cubanos são majoritariamente ex descendentes de escravos). Uma relação bem parecida que os brasileiros tem com o Candomblé, por exemplo.

A musica tradicional é bem legal também, com uma forte presença do batuque, da percussão. Outra semelhança é a alimentação, baseada no arroz e feijão tanto lá quanto e aqui. Apesar da menor variedade, Cuba tem produtos industrializados nos mercados também.

 

Porque a escolha em vir trabalhar no Brasil? Como foi sua adaptação ao paí­s?

 

Quando me formei, voltei para o Uruguai e trabalhei por um tempo em Montevidéu, até que a oportunidade de vir trabalhar no Brasil (pelo programa Mais Médicos) apareceu. Achei a oportunidade muito boa, tanto do ponto de vista financeiro quanto pela oportunidade de trabalho. Recebo R$ 10 mil de salário e mais um auxí­lio para moradia. Ganhava um pouco menos e trabalhava um pouco mais lá no Uruguai.

Estou me adaptando bem, gostando do trabalho no Passo de Torres, com vontade de cumprir bem minha função. Estou buscando conhecer a população culturalmente, os companheiros do trabalho, viajei pela região nos momentos de folga. í‰ um aprendizado constante, e em conjunto com muitas pessoas.

 

Qual a realidade que você encontrou na Unidade Básica de Saúde do Passo de Torres? Como é sua rotina por lá?

 

O UBS fica no Centro (bem perto do posto policial) do Passo de Torres. Penso que as condiçíµes são ótimas, o UBS está bem equipados para casos de baixa complexidade (a função dos UBS™s). A questão dos recursos humanos também vai bem, precisando ajeitar apenas pequenas coisas para fluir melhor. As O clinico geral que trabalha com saúde preventiva geralmente precisa pouca coisa: uma maca, um escritório, estetoscópio. Nos adaptamos ao que temos.

Faço, em média, cerca de 15 atendimentos pela manhã e outros 15 pela tarde. Há alguns diagnósticos de pacientes em começo de uma doença, e se há uma disfunção maior passa-se para outra esfera da Saúde, voltada para casos de complexidade maior. Também realizo muitas visitas domiciliares, uma vez por semana ao menos, priorizando pacientes acamados ou que não podem se movimentar muito.

 

Fale um pouco sobre sua percepção acerca do sistema de Saúde no Brasil. O que ainda pode melhorar na medicina preventiva daqui?

 

í‰ interessante lembrar que há comunidades Guaranis que – há muitos séculos “ utilizam ervas e plantas para curar (muitos remédios de hoje surgiram de plantas nativas do Brasil). Mas em relação a medicina tradicional, penso que o Sistema íšnico de Saúde (SUS) brasileiro é um projeto que, apesar das dificuldades em se fazer cumprir, tem um conceito muito bem pensado. Mas são 200 milhíµes de brasileiros, daí­ fica bem mais difí­cil gerenciar.

E há ainda muita burocracia no Brasil “ inclusive nas questíµes de saúde, com relaçíµes complexas entre verbas do municí­pio, do estado e paí­s. Isso também não facilita para as coisas a fluí­rem naturalmente.

Quanto í  medicina preventiva, penso que está caminhando bem, mas é uma tarefa difí­cil pelo tamanho da população. Tem muita gente humilde que, í s vezes, não conhece bem seus direitos, outros que exigem demais e se esquecem dos seus deveres. E a saúde é algo individual, o médico recomenda mas não pode proibir nada. Por isso a educação da população é tão importante, para saber como se prevenir e como pensar.

 

Como é a sua relação com os agentes comunitários de saúde?

 

Não estava acostumado a trabalhar com agentes comunitários, mas achei bem legal pela função fundamental que eles cumprem: fazem parte da comunidade, ajuda com a integração e informam sobre o que está acontecendo com as pessoas. Os dados prestados pelos agentes comunitários ajudam na fiscalização dos pacientes,

Acho interessante, por exemplo, um caso de uma paciente obesa, fiscalizada pela agente comunitária. Ela dizia que só comia frutas, verduras, e que sua alimentação era saudável, não sabia por que continuava sem emagrecer. Pedi para a agente comunitária chegar na casa dela na hora do almoço, para verificar seus hábitos alimentares. O prognostico é que ela comia, sim, frutas e verduras. Mas direto de uma panela enorme, misturado com muita farofa! Daí­ fica difí­cil emagrecer (risos).


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