O paradoxo da Libé ria: quando os escravos se tornam os escravizadores

5 de maio de 2012

 

 

Uma das tribos locais da Libéria: nativos não eram considerados cidadão pelos colonos negros norte-americanos

 

 

Charles Taylor, um corrupto ditador assassino, traficante de armas, estuprador e escravizador, foi presidente da Libéria. Recentemente, tornou-se também o primeiro ex-chefe de Estado condenado por um tribunal internacional. Mas o cerne desta matéria não será o cruel Charles Taylor, mas sim seu pobre e explorado paí­s, a Libéria, mais um dos miseráveis paí­ses africanos que muita gente nem sabe que existe. Porém, a Libéria conta com uma história peculiar em sua colonização, realizada no século 19 por escravos libertos dos Estados Unidos, que foram enviados por seus antigos patríµes de volta ao continente de origem dos seus ancestrais. Mas não vou me estender mais, e se você quer saber mais sobre a Liberia, leia a matéria abaixo.

 


 

Os diamantes de sangue de Charles Taylor, ou a Libéria na mí­dia internacional

 

O Tribunal Especial de Serra Leoa condenou na última quinta-feira (26/04) o ex-presidente da Libéria, Charles Taylor, por fornecer armas aos rebeldes de Serra Leoa em troca de diamantes, e por ter se tornado cúmplice de crimes de guerra e contra a humanidade, cometidos durante a guerra civil no paí­s africano, entre 1991 e 2003. Com 64 anos, Taylor, foi o primeiro ex-chefe de Estado condenado por um tribunal internacional, e colocou a Libéria nos holofortes da mí­dia mundial.

Charles Taylor assumiu o poder na Libéria no Natal de 1989, após torturar, mutilar e assassinar o seu antigo aliado, Samuel Doe, então presidente do paí­s. A tortura foi filmada e mostrada em noticiários em todo o mundo. O ví­deo mostra Johnson bebendo uma Budweiser enquanto corta a orelha de Doe.

Por parte da Serra Leoa (paí­s vizinho da Libéria), são muitas as denúncias contra o ex-ditador, que vão de assassinatos, estupros de meninas e mulheres ao recrutamento de crianças-soldado, que também eram tratados como escravos para extrair diamantes. "Muitas mutilaçíµes e violaçíµes a mulheres eram cometidas em público, e houve até pessoas queimadas vivas em suas casas", ressaltou o juiz responsável pelo caso, Richard Lussick, como exemplos das atrocidades cometidas em Serra Leoa. O conflito civil que assolou Serra Leoa entre 1991 e 2002 gerou mais de 100 mil ví­timas, entre elas uma multidão de mutilados e 50 mil mortos. Mas essa matéria não irá falar da mutilada Serra Leoa (embora a realidade do pobre paí­s mereça ser melhor conhecida).

 

 

Os escravos estão livres, mas como nos livrar deles? Vamos mandá-los para a ífrica!

 

A Libéria é mais um pais miserável da ífrica Ocidental. Foi fundada por seis mil negros norte-americanos, trazidos para a ífrica em 1821 por ação da Sociedade Americana de Colonização (ACS, na sigla em inglês). Tratavam-se de negros que tinham sido libertos da escravatura, e que ganharam a área de presente de seus antigos patríµes para que assim pudessem viver na terra de seus ancestrais. Os brancos não faziam isso por caridade, mas sim para expulsar dos EUA os negros recém-libertos da escravidão, já que estes (por seus instintos selvagens) não conseguiriam se adequar a uma sociedade livre norte-americana. O regresso í  ífrica seria uma solução para evitar certos "perigos" imaginados como resultado da presença negra, como o casamento interracial ou a criminalidade.

Guiados pela Sociedade Americana de Colonização, os primeiros escravos libertos aportaram na costa da Monróvia (hoje capital do paí­s) onde fixaram sua colí´nia. Deram o nome de Libéria (Terra Livre, em latim) ao seu novo lar. A princí­pio, a administração do novo paí­s foi entregue a representantes escolhidos pela própria ACS. Mas, com o crescimento populacional e o progressivo alargamento do território, começaram a surgir lideranças locais entre os ex-escravos.

Na expectativa de aumentar as áreas cultiváveis, os antigos escravos norte americanos passaram a adquirir mais terras e avançar suas fazendas além das fronteiras originais. Em 26 de Julho de 1847, a Libéria declarou a sua independência, sendo o primeiro paí­s da ífrica a se tornar independente, embora permanecesse estritamente atrelada aos Estados Unidos. Mais 13 mil escravos libertos dos EUA chegam í  Libéria, após a Guerra Civil americana (1861-1865) e o fim definitivo da escravidão.  

 

 

 

 

Os escravos que viraram escravizadores

 

Não foi surpresa para ninguém quando surgiram as primeiras desavenças com as tribos locais, que ainda por cima foram excluí­das da cidadania no paí­s. As fronteiras – traçadas inicialmente pela ACS e expandidas pelos negros americanos – dividiram etnias aliadas e reuniram no mesmo território cerca de 15 tribos, algumas delas inimigas há séculos. Os conflitos internos eram inevitáveis.

As áreas litorâneas, colonizadas pelos negros americanos, prosperavam com o auxí­lio dos Estados Unidos. Plantaçíµes de mandioca e café e a extração de borracha cresciam pela costa. Enquanto isso, o interior habitado pelos nativos africanos era totalmente negligenciado, com a população vivendo em miséria.

 Diante deste fato, um paradoxo curioso e triste ocorreu na chamada Terra Livre da ífrica. Com fome, as tribos nativas submeteram-se a trabalhar nas fazendas da elite negra norte-americana, em troca de comida para suas famí­lias. Os nativos eram ridicularizados, açoitados e menosprezados pelos patríµes. Com o poder em suas mãos, os ex-escravos passaram a ser os escravizadores. Pois este, afinal, era o único modelo social que os negros norte-americanos conheciam. Haviam nascido na escravidão, seus pais e avós haviam nascido escravos, então era quase natural que, agora libertos, adotassem o sistema em suas vidas. Não era possí­vel a eles vislumbrar um mundo onde todos vivessem em liberdade.

 

 

 

Charles Taylor: Ex-ditador da Libéri foi o primeiro ex-chefe de Estado condenado por um tribunal internacional

 

 

 

 Preconceito e repressão: os negros que não queriam ser negros

 

Em pouco tempo os refinados negros da Libéria organizaram uma sociedade a parte dos selvagens negros nativos. Criaram uma constituição e um modelo polí­tico semelhante aos dos EUA, definiram a religião Batista como oficial e se declararam os únicos cidadãos por direito. Como não podiam se diferenciar da população local pela cor de pele, mostravam sua superioridade vestindo-se com a pompa e requinte de seus senhores brancos na América, utilizando fraques, luvas e chapéus, mesmo nos dias de calor escaldante. As roupas eram ridí­culas comparadas com o contexto africano, viviam empapadas de suor, fedidas, mas os liberianos utilizavam perfumes e colí´nias em excesso para amenizar o odor.

Em 1869, os américo-liberianos instituí­ram um sistema do partido único, o True Whig Party, que ficaria no poder por um total de 111 anos, excluindo do poder público os nativos. Foram demarcados territórios para isolar as 16 tribos locais do conví­vio dos negros da América, e quando estas ultrapassavam seus limites eram severamente punidas pela bem organizada e armada polí­cia da Monrávia, cujos armamentos eram patrocinados pelos EUA. Quando estourava alguma rebelião, esta mesma polí­cia era enviada para realizar expediçíµes punitivas com o objetivo de capturar escravos.

 

 

Libéria hoje: abandono, guerra, corrupção e miséria

 

Por grande parte do século 20, a classe polí­tica dominante na Libéria continuou formada pelos descendentes dos ex-escravos norte-americanos, com seu True Whig Party. Após a Primeira Guerra Mundial, entretanto, os EUA frearam os investimentos no paí­s da costa oeste africana, deixando a elite liberiana entregue a própria sorte, o que na ífrica significa – quase invariavelmente – uma brecha para guerras civis. O calculo é simples: são dezenas de tribos rivais agrupadas num mesmo pais, tendo que buscar a paz incompreensí­vel. Porém, são tribos que, historicamente, guerreiam já há milhares de anos entre si, o ódio entre etnias rivais é inato e quase indiscutí­vel em muitas sociedades africanas. Isso já seria o suficiente para gerar grandes ondas de estabilidade, mas se torna o caos com a presença de uma minoria negra, estrangeira dominando o paí­s.

Porém, o partido dos colonos negros dos EUA conseguiu, por meio da ditadura e exploração, se manter por um longo tempo no poder. Apenas em 1980 um golpe militar, liderado por Samuel Doe, membro de uma etnia local, tira o True Whig Party do poder. E em 1989, acontece o inevitável: várias etnias lutam pelo poder em uma guerra civil sangrenta, que durou até 2003 matando centenas de milhares de liberianos.

Hoje, Os habitantes da Libéria sofrem com vários problemas socioeconí´micos. O desemprego atinge grande parte da população; a fome e a desnutrição castigam os habitantes. A cada mil nascidos na Libéria, 93 morrem antes de completar um ano de idade; a maioria dos habitantes vive com menos de 1,25 dólar  por dia, ou seja, abaixo da linha de pobreza. O paí­s tem um dos IDH mais baixos do mundo, e a expectativa de vida é de menos de 47 anos.

Em seu relatório anual de 2010, a organização não-governamental Transparência Internacional (TI) identificou a Libéria como a nação mais corrupta do mundo. O maior dado verificável de corrupção, de acordo com a entidade, são os serviços públicos. Verificou-se que, ao procurar a atenção de um prestador de serviços públicos, aproximadamente 89 % da população do paí­s tinha de pagar alguma forma de suborno.


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