OPINIÃO – AINDA ESTAMOS AQUI!

"Dizem que uma imagem vale por mil palavras. Digo eu, este filme, 'Ainda Estou Aqui' (que rendeu o Globo de Ouro de Melhor Atriz para Fernanda Torres) vale por mil discursos."

10 de janeiro de 2025

Aprendi com meu  contemporâneo da Faculdade de Filosofia da UFRGS, idos de 60 do século passado, João Carlos Brum Torres, uma passagem de I. Kant, Filósofo do Iluminismo, sobre a diferença entre um evento e um acontecimento.

“Em O Conflito das Faculdades, depois de perguntar Se estará o gênero humano em constante progresso para o melhor , Kant acrescenta que só se poderá responder positivamente a essa interrogação se a experiência nos apresentar “um acontecimento que aponte”, ainda que “de modo indeterminado quanto ao tempo”, nossa “aptidão para sermos causa do progresso”, permitindo, assim, “inferir a progressão para o melhor (….).” Um tal acontecimento, acrescenta Kant, deverá ser tido então “como signo histórico”, um signum rememorativum, demonstrativum, prognostikon” (João Carlos Brum Torres in “As eleições americanas de 2016 como sinal histórico” – Setembro de 2016)

Com efeito, o acontecimento é uma espécie de epifania, um feito de caráter transcendental que concelebra um, antes e outro, depois. Como a datação do calendário: AC e DC; ou a Revolução Francesa.  Assim foram, por exemplo, no Brasil, nas últimas décadas, o suicídio de Vargas, em 1954, a Legalidade no Rio Grande do Sul em 1961, o comício de Jango na Central do Brasil  dez anos depois, a passeata dos cem mil, no Rio de Janeiro, em 1968, o cadáver de Vladimir Herzog nos subterrâneos da repressão em 1975, o foto de Ulysses Guimarães no dia da promulgação da Constituição em 8 de outubro de 1988, as mobilizações massivas de junho de 2013. Marcos.

Pois, tendo eu vivido de perto todos estes momentos, ouso dizer que pressinto no Prêmio Globo de Ouro da Fernanda Torres, neste início de 2025, pela sua atuação no filme “Ainda estou aqui”, um desses momentos. Em nenhum deles, acima citados, grandiloquentes, no passado, há um protagonista exclusivo, embora haja uma persona que o sintetize. Eles resultam, cada um, de um processo que, num dado momento, eclode. É célebre, aliás, a defesa de Leon Trótski, quando acusado pelos tribunais do Czar russo de ser o responsável pela revolução de 1905. Disse ele: – Ninguém faz uma revolução, elas “acontecem”. Todos os eventos, acima citados,  também aconteceram, no sentido de terem se desenrolado como produto de um conjunto de forças históricas objetivas e subjetivas. Pois é isso que está “acontecendo” com o filme “Ainda estou aqui”. Nem é um grande filme para entrar na galeria dos clássicos do cinema. Talvez seja um Poema sem Poesia, mas comovente como um cordel da Maria Degolada.  Muitos, até,  o criticam por trair uma espécie de selo Globo, impregnado de andamento novelesco. Seria, até, o caso de se perguntar: – E daí? Qual o problema? Não são ditas novelas construídas sob a égide da Poética Aristotélica, com início, meio e fim amorais? Ou, por acaso, preferiram “Metrópole”, do Coppola?

Verdade, é , mais ou menos, como aquele  “rio que passa pela minha aldeia”, ou como as tolas cartas de amor estigmatizadas, também/ por Fernando Pessoa. Mas este filme “nos” diz respeito. Não é um “filme autoral”, mas íntimo. Vi muita gente dizer que viu e chorou. Eu também. Tem, aliás,  uma interpretação magistral, em preto e branco,  de uma atriz nada performática, Fernanda Montenegro,  que nos conduz para uma empatia com a personagem que interpreta, remetendo-nos, pelo afeto, às sombras do regime que se quis perpetuar recentemente  sob a égide insidiosa de saudosos do regime militar.

Dizem que uma imagem vale por mil palavras. Digo eu, este filme vale por mil discursos. Diz tudo, sem dizê-lo. Coincidiu, curiosamente – ora direis ouvir estrelas! – com a divulgação de uma Pesquisa de Opinião na qual 87% dos brasileiros dizem preferir a democracia, condenando os distúrbios do 8 de janeiro. Não por acaso, nestes dias, o Supremo Tribunal Militar remete para o julgamento civil do Supremo Tribunal Federal o processo incriminando vários coronéis por haverem incitado ao golpe no final de 2022.  Desconfio que o “Aindo estou aqui” está operando magicamente para pavimentar o caminho que nos levará a retomar a História em 2026, soterrando o fantasma do retrocesso. Tal como em 2002, como advertiu o historiador Eric Hobsbawn, estamos navegando contra a corrente ocidental e, pelo nosso peso no Sul Global, contribuindo, mais do qualquer outro país do lado de cá do Equador, para a distensão do mundo.

Não é isso um “acontecimento”?

Oressa Gonzaguinha! Ainda estamos aqui!

“Eu quero mais é me abrir e que essa vida entre assim

Como se fosse o sol desvirginando a madrugada

Quero sentir a dor dessa manhã “




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