Antes que me acusem de algo como “esse aí não gosta de cachorro”, quero esclarecer: pesquisei se existia um nome específico para esse tipo de ideia, porque hoje em dia existem nomes para todo tipo de “aversão” ou perseguição/discriminação, mas não encontrei. E não, eu gosto de cachorros e de qualquer animal, mas, de preferência, soltos na natureza – que é o lugar deles.
Na minha infância, convivi com vários cachorros. Geralmente, eles não tinham um dono específico, eram da família. Sei que hoje em dia não se fala mais “dono”, e sim “tutor”. É uma questão de semântica, mas cada um na sua. Me lembro bem de alguns. O Cigano é o primeiro que me vem à memória. Lembro que meu pai ganhou o Cigano do meu avô materno, sim, naquela época se ganhavam cachorros; era raro alguém comprar. Ele era um perdigueiro e servia para caçar perdizes. Naquele tempo, era permitido caçar em campos autorizados, embora também houvesse caça clandestina. Após anos de caça, o Cigano se aposentou e ficou conosco, vivendo na sua casinha no pátio da nossa casa.
Outro que lembro bem foi o Skip, um cachorro sem raça definida que nos acompanhou por muito tempo. Ele tinha uma personalidade forte: apesar de pequeno, era valente e cuidava da casa. Naquele tempo, os cachorros tinham uma “tarefa”, um sentido na vida. O Cigano era um caçador, e o Skip era um guardião. Ambos viviam em suas casinhas no quintal e passavam boa parte do tempo soltos pelo pátio.
Houve outros, mas muitos tiveram uma vida curta, interrompida por doenças ou por venenos que certas pessoas colocavam na comida deles. Isso era “coisa daquele tempo”… ou será que não?
Hoje cuido do Thor, um “senhor” Labrador de meia-idade, completamente independente. Ele também é um cachorro da família. Foi comprado pela minha irmã mais nova, que, por morar em um apartamento, acabou “doando” o Thor para o meu pai, que o levou para morar na chácara da família. Lá, ele é o dono do pedaço e anfitrião de todos que passam por lá. Vive solto e passeia garboso pela vizinhança, onde todos o conhecem bem. Thor é tranquilo, não se incomoda com nada, é amigo de todos os outros cães da região e não entra em brigas. É um cachorro de companhia: está sempre ao seu lado, zelando por você, mas sem ser agressivo com ninguém.
Moro em frente a uma praça – a “praça dos cachorros”. Antes, ela era conhecida como a Praça dos Cavalos ou Praça João Neves da Fontoura, hoje é a famosa Quatro Praças. Pela quantidade de cachorros que passeiam por lá, acredito que logo mudará de nome novamente. Repito: não tenho nada contra cachorros. Mas não entendo por que as pessoas não se contentam com um único exemplar ou, no máximo, dois. A maioria dos frequentadores da praça tem no mínimo três cachorros. Sei que eles servem de companhia para pessoas solitárias, e essa é, de fato, a principal “função” dos cães hoje em dia.
O problema que vejo é que, de companheiros, os cachorros estão se tornando os “reis do pedaço”, determinando que seus donos – ou melhor, tutores – façam suas vidas girarem em torno deles. Não vejo mais tutores passeando com seus cachorros, mas, sim, cachorros levando seus tutores para passear.
A relação entre cachorro e dono mudou muito ao longo da história. Passamos de um convívio mais distante – com cães vivendo do lado de fora e presos – para um contato extremamente próximo, dentro das casas e até nas camas dos tutores. Saímos de um extremo para outro. Antigamente, muito desleixo e pouco cuidado; hoje, os cachorros têm mais regalias que muitas pessoas: roupas para todas as estações do ano, tratamentos de beleza, comidas especiais, acompanhamento médico, carrinhos de transporte e, sinceramente, sabe-se lá o quê mais! Vejo cachorros que nem andam mais pelas ruas: são conduzidos em carrinhos de bebê ou carregados no colo pelos tutores.
Essa transformação na relação entre humanos e cachorros diz muito sobre os nossos tempos. De ajudantes no trabalho e guardiões da casa, os cães passaram a ocupar um lugar quase aristocrático em nossas vidas. Hoje, são tratados como reis – ou melhor, como “filhos” – com direito a carrinhos, roupas de grife e agendas mais cheias que as dos próprios tutores.
Mas o curioso é que, enquanto os cães pareciam felizes vivendo como cães, nós decidimos que eles precisavam de uma “promoção” para quase-humanos. Será que eles pediram tudo isso? Ou será que somos nós que estamos projetando nossas carências e complicando algo que sempre foi simples? No fim das contas, talvez eles só queiram um pouco de liberdade, um campo para correr e, quem sabe, um osso – sem precisar virar “reizinhos” ou “filhos de estimação” para serem felizes.