DIÁRIO DE MOCHILA – Experiência marcante na comunidade quilombola dos Kalungas

Buenas! Na semana anterior falei de quando passei por um desafio pessoal de ficar 15 dias sem usar meu dinheiro e, após isso, mantive um princípio de não gastar mais com estadia. Nessa edição, falo dos meus últimos dias no estado do Goiás, quando passei pela comunidade quilombola dos Kalungas. Espero que gostem!

FOTO - Pipe na comunidade quilombola, com a família de Seu Valdemir
28 de agosto de 2022

Despedida do Goiás

 

Após minha experiência de ficar um período sem usar meu dinheiro, ainda no Goiás, decidi então manter em minha viagem o princípio de não gastar mais com estadia. Ou seja, não me hospedaria mais em hostel, campings, ou qualquer outro meio que envolvesse dinheiro. Seria apenas com minha barraca, na casa de amigos, ou de alguém que me acolhesse na rua. Gastos com transporte eu já não tinha a tempo, pois já me locomovia de carona. Esses dois aspectos mudaram demais o meu estilo de viagem inicial. Era outro estilo de vida que cada vez mais me dava uma outra visão de mundo. E me sentia também muito mais confiante de mim mesmo, de minha autonomia e minha liberdade. Sentia cada vez mais que eu desconstruía valores antigos e me aproximava da minha real essência. Isso potencializou ainda mais minha simplicidade.

Minha despedida do Goiás seria por onde comecei, na Chapada dos Veadeiros. Na primeira vez que estive por la fiz uma amizade com um nativo da comunidade quilombola dos Kalungas. Essa comunidade é considerada a maior quilombola do mundo. Sua área equivale a área do país europeu Luxemburgo, para se ter uma ideia. Essa amizade que fiz com Carlos foi em uma das cidades da Chapada. Os Kalungas costumam sair de casa e irem para a centros urbanos atrás de emprego. E foi ele quem me convidou para passar uns dias na comunidade. Teria um festejo tradicional do Divino Espírito Santo e ele sabia que eu gostava muito de conhecer culturas novas. Então decidi ir. E embarquei nessa aventura que, até hoje, considero a maior experiência antropológica de minha jornada.

Território Kalunga

O território Kalunga fica em meio a grandiosas serras isoladas no cerrado. A comunidade é dividida em “setores”, como se fossem uma espécie de bairros. Cada setor abriga um grupo de casas, isoladas entre elas, as quais quase sempre são de parentes quando agrupadas. Como se fossem mini chácaras. As casas, em 90% dos casos, são de taipa e teto de palha. A comunidade ficou isolada do mundo externo até o final dos anos 90, quando uma antropóloga ficou sabendo de sua existência e, junto ao governo, iniciou um processo de mudanças por lá. A primeira foi a construção de estradas. Antes, a locomoção era apenas por animal em trilhas. Até essa época, apenas alguns homens iam em seus cavalos até a cidade mais próxima para comprar, basicamente, sal e querosene (para os “candieiros”, pois não havia luz elétrica). O resto era criado por lá. Eles se alimentavam de tudo que plantavam e animais que criavam. Medicina, apenas a da mata. As mulheres, mesmo as mais velhas, nunca haviam saído de lá até a vinda das estradas. Ou seja, nunca tinham visto coisas como um carro, uma construção de alvenaria, luz elétrica, Coca Cola e, também, pessoas brancas. Até poucos anos atrás, todos viviam como sempre viveram nos últimos 300 anos, período que é estipulado a existência da comunidade. E após as estradas, vieram a água encanada (geralmente um único ponto por casa, quando tem) e energia elétrica. Consequentemente, internet. Como o início desse processo é relativamente recente e a área Kalunga é gigantesca, alguns setores ainda não estão totalmente assistidos. Ou seja, ainda sem estradas, água encanada e eletricidade – quase como se vivia há 300 anos atrás. Trabalhar com moeda por lá também é algo novo, então o escambo continua muito vivo. Ambientes comerciais não existem. No máximo algum morador que vende uma bolacha, ou um picolé caseiro.

 

Vivendo um sonho

 

FOTO – Benjamin e Belinha em frente a barraca

 

Entrei lá com a ideia de ficar 2 noites e voltar para a Chapada, de onde eu pegaria estrada para rumar ao Tocantins. Mas logo no primeiro dia já vi que ficaria mais. No total, acabaram sendo 10 dias. E estando lá, descobri que a área da comunidade se estendia até a divisa com o Tocantins, então, decidi entrar nesse novo estado por dentro do território Kalunga. Friso que entrei lá sem comida nem dinheiro. Durante esses dias dependi exclusivamente do alimentos dos nativos. Eu poderia escrever um livro inteiro falando desse período. De tudo que vi e, principalmente, da forma que fui recebido. No total, passei pela casa de 4 famílias diferentes. Tudo, apenas por estar andando nas estradas e trilhas de areia que tem por lá, e ser colocado pra dentro das casas. A energia de bondade e inocência desse povo são surreais. Parecia que eu estava em um sonho e não queria sair dele. E junto com isso, paisagens de filme. Serras maravilhosas com rios límpidos e abundantes correndo entre elas. Por mais que as estradas tenham vindo e com elas a entrada de produtos industrializados, a grande maioria dos moradores permanece apenas comendo o que cultiva. A cultura quilombola ainda é muito viva por lá, apesar de estar diminuindo.

Como eu já disse, a área da comunidade é grande demais. Existem alguns setores que já estão mais dentro do “sistema”, por estarem mais próximos as cidades e possuírem atrativos turísticos. Mas essa região que eu estava não era o caso. Era uma região absolutamente não turística. Apenas alguns funcionários da prefeitura e governo do estado transitavam por lá, volta e meia, fora os moradores. Então, imagina-se que alguém como eu, junto com uma grande mochila, chamava muito a atenção.

A experiência de estar numa festividade deles foi indescritível. Ver suas cantorias e rezas foi único. E o contato diário com os moradores e suas culturas também foi algo totalmente novo pra mim. Mas sem dúvidas, a maior experiência que tive foi de ficar 3 noites na casa de uma família que ficava no setor considerado o menor e mais isolado de todos. Ele era um dos que as estradas e energia ainda não havia chegado. Cheguei lá depois de andar alguns quilômetros por trilhas exuberantes que beiravam o rio Paranã, o maior e principal da comunidade. A família era composta de um casal e seus 5 filhos. Os dois menores, Bela e Benjamin, nunca haviam visto uma pessoa branca, fui o primeiro. Nunca esqueço da cara deles quando apareci em frente a sua casa. Seus queixos caíram no chão e pareciam não fechar mais. Depois do primeiro espanto ter passado e verem que eu era amigo, alisavam minha pele e meu cabelo como se eu fosse um brinquedo.

Com essa família, o que mais aprendi foi que a felicidade está nas coisas mais simples. Todos viviam em uma grande harmonia, problemas pareciam não existir. Essa família praticamente não usava dinheiro para nada. O que comiam era cultivado e, o trabalho que o Seu Valdemir (pai) fazia era na base do escambo. Ele costumava fazer tijolos de barro para moradores da região e, em troca, ganhava algum excedente de alguma colheita, ou uma galinha. Na primeira noite que passei por lá, mataram uma para a janta, apenas pra me receber bem. As crianças de divertiam apenas com a natureza, como era antigamente. Subindo em árvores, brincando com pedras, ou tomando banho no rio. Sempre plenamente felizes. Por lá, como eu disse, não havia energia elétrica nem internet.

dona Procópia, lider da comunidade

Abrindo um parênteses, achei interessante traçar um comparativo desse setor, “menos desenvolvido”, com as crianças dos setores “mais desenvolvidos”, quando elas já ficavam imersas em seus celulares e já não distribuíam tantos sorrisos e boa energia. Assim como os adultos, que nesses setores com mais estrutura, falavam muito mais de dinheiro e consumismo, e também consumiam mais cachaça. Foi nesse período que parei para refletir sobre até que ponto a entrada da “civilização” em algum lugar virgem traz realmente o bem maior. Conversei muito durante um dia com Dona Procópia, líder de toda comunidade Kalunga, aos seus 88 anos. Ela confessou que depois das estradas muitas coisas pioraram. Os jovens já não queriam mais manter as culturas quilombolas, apenas ir atrás de dinheiro para “ter” mais. Doenças como a diabetes passaram a ser normais e os idosos, que antes era normal passarem dos 100 anos, hoje mal chegam aos 80. Segundo ela, a entrada de produtos industrializados e outras drogas são os principais responsáveis por isso. E também me disse que, quando ainda eram isolados da civilização, em nenhum momento passaram por grandes dificuldades, visto que a abundância de água e comida sempre existiu. Fecha parênteses.

 

Despedida

 

Depois dos 3 dias em que passei com a família em questão, ao me despedir, a menina mais velha, chamada Vitória, de 9 anos, chorou. Uma menina braba, de poucos sorrisos e palavras. Mas que derramou lágrimas no momento em que eu partia. Chorei junto com ela e a dei meu colar para que ela tivesse uma recordação. Essa menina me fez prometer voltar para lá um dia. Promessa que carrego comigo até hoje e um dia cumprirei. Alguns meses após minha estada por lá, fiz uma grande logística para enviar um álbum de fotografias que fiz junto com eles. Até hoje não sei como foi a reação deles, mas espero que tenham gostado. Já vi muita simplicidade em minha jornada, mas uma verdadeira e recheada de amor como nessa família, ainda não.

Depois desses 10 dias imersos na cultura Kalunga, e de andar cerca de 150km, cruzei o Rio Bezerras, que fez eu deixar o estado do Goiás e me adentrar no Tocantins, estado que seria a minha casa nos meses seguintes. A partir da semana que vem começo a falar de todas as minhas histórias e aventuras por esse estado que considero até hoje, o estado que mais me identifiquei no Brasil. Até la!


Publicado em: Turismo






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