DIÁRIO DE MOCHILA – Intensidade, trabalho e ‘balagam’ em Jeri

Buenas! Na última edição, falei sobre o início de minha relação com os israelenses, enquanto gerenciava um hostel. Nessa semana, sigo nessa que denominei como sendo a fase de “Intensidade” de minha mágica passagem por Jericoacoara. Boa leitura!

FOTO – Pipe com alguns dos hóspedes israelenses
8 de julho de 2023

Eu e ‘meus judeus’

 

Era o ínicio de uma grande paixão que eu estava vivendo. Duplamente, pode-se dizer. Primeiro por, desde minha chegada à Jeri, estar apaixonado por tudo que estava se abrindo para mim naquele novo estilo de vida. Segundo, por ter sido flechado pelo cupido em minha relação com o povo israelense que lotava cada dia mais o hostel que eu gerenciava. Hostel esse que, por uma mescla de simplesmente querer, aliado a uma força maior de não conseguir controlar essa alta demanda, decidi deixar como sendo exclusivo deles, dos israelenses. E por uma estratégia de negócio, entendendo que misturá-los com hóspedes de outras nacionalidades não era bom e, ao mesmo tempo, mantê-los apenas em território judeu era o que, no fundo, todos eles queriam. E conseguiriam isso comigo. Por isso, era rara uma exceção de algum hóspede que não quisesse ficar mais e mais tempo no hostel. Por toda aquela atmosfera de boas energias que consegui criar, fazendo todos eles se sentirem em casa. Eles me amavam e eu os amava. Era uma relação linda de se ver. Tentava decorar o nome de cada um deles. Nomes difíceis de se pronunciar. Em relação a isso, há duas curiosidades muito interessantes. Primeiro, que boa parte dos nomes Israelenses (pelo menos os desses jovens que eu recebia) são palavras comuns usadas no dia a dia. Como “música”, “onda”, “brilho”, etc. Claro que, na língua deles, em hebraico. E por fim, esses mesmos nomes são, muitas vezes, sem gênero definido. Ou seja, são usados tanto para homens como para mulheres. Exatamente o mesmo nome. Achei isso muito lindo e puro. Mas lindo mesmo de se ver era a união deles. Uma união que muitos que não são israelenses veem com um certo preconceito. Os julgam serem muito fechados e às vezes, até prepotentes. Mas eu, por cada vez mais entender a história e realidade de vida muito tensa em seu país, via isso com muita empatia. Morar em Israel significa sair de casa e poder ser degolado em meio a rua, simplesmente por ser um judeu. Ou escutar o soar de uma muito forte sirene que indica que todos devem buscar abrigo, pois uma bomba vinda de Gaza está à caminho. Israelenses não podem cruzar absolutamente nenhuma fronteira de seu país pois, todos outros ao redor, simplesmente os querem matar. Para sair de lá, apenas de avião e indo para algum país que não os queira mortos. Todo esse ódio basicamente vindo do lado mulçumano. Claro que são mulçumanos extremistas que geram esse terror. Inclusive, muito “bons” mulçumanos vivem em Israel. Mas infelizmente é uma realidade que eles tem que enfrentar diariamente e desde o início de sua existência. E essa energia que já está impregnada em suas culturas que os deixa assim, tão fechados. Eles tem muita dificuldade de confiar em alguém que não seja judeu. E aliado a isso, são meninos e meninas muito jovens que, pela primeira vez na vida, estão fazendo uma viagem de longa data pelo globo. Estar com pessoas conhecidas por perto nunca é demais nesse tipo de situação. Para eles e qualquer outro ser humano. E eu os entendia muito bem. Falávamos muito sobre isso. Esse era um dos pontos que eu os admirava muito e vice-versa.

 

Big Balagam

FOTO – Pipe e voluntários do hostel em Jericoacoara

A língua oficial do hostel passou a ser a hebraica. Inglês, eles falavam apenas comigo e com meus voluntários. Obviamente, aos poucos fui aprendendo algumas palavras em seu idioma. É uma pronúncia difícil, muito diferentes do português. Mas eu me esforçava. E a minha preferida, desde o início, foi “Balagam”. Balagam em hebraico significa bagunça. Coisa que, desde o início desse grande êxodo israelense, passou a ser algo comum pelo hostel. Era uma bagunça diária difícil de explicar. Tive que aumentar o número de voluntários para manter a operação funcionando. Os quartos pareciam cena de guerra. Eram mochilas, roupas sujas, areia e por aí vai, tudo em cima de tudo. Nos banheiros, difícil era o dia em que algum vaso não entupia. Como boa parte de países do mundo, a cultura de Israel costuma jogar papel higiênico dentro do vaso, e não no lixo. Nem mesmo os grandes avisos fixados dentro das toaletes evitavam isso. A cozinha, principalmente no turno da noite, era tomada por praticamente todos os hóspedes. E muitas vezes, por outros israelenses que não estavam hospedados lá. Sim, eu permitia isso. Muitos desses visitantes, no dia seguinte voltavam com suas malas querendo uma cama para se hospedar. Mas isso aumentava mais ainda a bagunça. E o pior eram as madrugadas. Normalmente, todos saiam à noite para jantar e ir a alguma festa. Voltavam no meio da noite normalmente bem chapados, de álcool e maconha, principalmente, e iam direto para a cozinha para fazer a “larica” (comer). E obviamente, sem nenhum tipo de silêncio. E o pobre Felipe, que tinha seu quarto na divisa da cozinha e costumava dormir muito cedo, sofria muito para dormir. Por algumas vezes, saía da cama, ia até eles e pedia silêncio. Eles respeitavam na hora e pediam mil desculpas. Passavam a falar cochichando ou se dispersavam. O respeito deles por mim era muito bonito de se ver. Mas nisso meu (muito leve) sono já era atrapalhado. O que me fazia dormir menos que o habitual e, consequentemente, ter um dia seguinte mais cansativo.

As reservas e pagamentos, que antes eram todas feitas pelas plataformas online, agora eram obrigatoriamente feitas por mim. O que aumentou demais minha demanda. Para se hospedar naquele hostel, apenas falando com o Felipe. E tudo era feito via mensagens e ligações em inglês. Eu não tinha fluência nessa língua, estava me virando. O que de cara já deixava tudo mais difícil. E essa administração de reservas e pagamentos era um grande quebra cabeça. Eles não chegavam com uma data certa para sair. Iam deixando fluir. E como todos amavam viver o hostel e Jericoacoara, acabavam estendendo suas estadias dia a dia. “Felipe, vou ficar mais uma noite, ok?”. Essa frase era uma das mais ouvidas por mim em uma manhã. Tinha um lado meu que amava ouvir aquilo, pois significava indiretamente que eles estavam se sentindo em casa. O lado ruim era administrar os espaços vagos. O hostel estava sempre lotado, ou quase lotado. Então esse cálculo tinha que ser milimetricamente organizado por mim para não dar o famoso “overbooking”, quando um estabelecimento, por falta de organização, vende mais camas que tem disponível. E isso aconteceu algumas vezes. Nesses casos, eu jogava meus voluntários para o outro hostel ou até mesmo para a rede do lado de fora. Sempre se dava um jeito. Mas essa logística, que antes dos israelenses era feita 100% pela plataforma online do Booking e depois deles por mim, em uma planilha que criei usando o computador de uma das voluntárias, passou a ser mais um ponto que intensificou e muito minhas demandas no hostel.

 

Colapso

 

Quando algo que normalmente não é usado com tanta frequência passa a ser usado ininterruptamente, pode começar a causar problemas técnicos. Para tudo na vida é assim. Nosso corpo, nossa mente, utensílios, ferramentas, e um hostel também. Foi o que o hostel que eu gerenciava passou a sentir com o passar das semanas com a alta ocupação dos israelenses. Eles não só o lotavam diariamente, como usavam todos os cantos possíveis. E isso iniciou uma cadeia de problemas técnicos naquela casa, que antes estava acostumada com um movimento mais convencional e pacato. Um problema atrás do outro, sem parar. Iniciou com o entupimento de uma encanação, que se fez necessária uma grande mobilização em um dia de chuva para consertarmos. Em seguida, iniciaram os problemas de súbitas faltas de água, que em alguns pontos estavam relacionadas a estrutura do hostel e, outras, ao fornecimento de água da vila. Depois disso, iniciaram problemas em aparelhos de ar-condicionado que por não serem bem consertados, geraram problemas elétricos de caráter mais generalizado na casa e, consequentemente, gerando também seguidas quedas de luz. Fora outros problemas menores que faziam parte da rotina. E tudo isso acontecendo praticamente sempre com o hostel lotado de israelenses. E praticamente apenas eu tendo que administrar tudo. Não só esses problemas, como também toda a logística que falei anteriormente de administração de reservas, pagamentos, check-in e check-out. E isso tudo se intensificou por, durante algumas semanas, eu não ter o suporte devido de um dos proprietários do hostel. Não vou entrar em detalhes em relação aos porquês disso, mas foi um fato. Eu estava sozinho nesse cenário. E parar piorar mais ainda, nesse mesmo período tive que administrar uma série de roubos que se iniciaram de forma misteriosa dentro do hostel e que, com o tempo, descobri um de meus voluntários ser o responsável. E pior que era um dos que considerava meu braço direito. Cocaína. Se perdeu nesse caminho e passou a furtar objetos dos hóspedes para sustentar o vício. Obviamente, o mandei embora. Apesar de ter sido difícil, mas era inevitável.

E sou um ser humano. E por mais que, desde minha chegada a Jeri, eu estivesse vivendo talvez o momento de maior felicidade de minha vida, esse contexto em que todos os problemas se intensificaram, me fez entrar em um pequeno colapso. Um acúmulo de trabalho e estresse que eu nem imaginaria que poderia voltar a ter experiência parecida. Me lembraram os tempos de mercado imobiliário em Porto Alegre. Perdi um pouco do controle. A vida é assim. Quando achamos que estamos sob o controle total de tudo, ela vem e nos surpreende. Eu tinha que colocar o pé no freio e respirar um pouco. Eu já fechava 2 meses em Jeri, sem ter tido ao menos um dia de folga (por opção). E foi então que decidi tirar uma mini férias. Na próxima semana conto como foi esse meu merecido descanso e meu retorno para minha terceira e última fase de Jeri, a de “Equilíbrio”. Até lá!


Publicado em: Turismo






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