Gravura do século XIX, retratando a bailarina Marietta Baderna
No meio da festa, toca o telefone. í‰ o vizinho rabugento do 302, reclamando, pela milésima vez, da baderna. í‰ bem provável que o baladeiro não dê a menor importância para a interrupção, mas você já parou pra pensar de onde veio a palavra baderna?
Baderna é uma palavra exclusiva do português brasileiro que significa confusão, desordem, bagunça. Mas sua origem é bem peculiar: servia para classificar, de maneira pejorativa, os seguidores barulhentos de uma dançarina italiana que causou furor no País. Seu nome? Maria Baderna.
Pois está lá, no Dicionário Aurélio. Baderna era o sobrenome de uma dançarina italiana que esteve no Brasil em meados do século 19. Mas que fique bem claro: não era a artista, mas sim seus fanáticos admiradores que gostavam de confusíµes e brigas de rua. Daí a dizer-se que os tumultos tinham sido provocados pelo pessoal da Baderna ou pelos baderneiros de sempre foi um passo.
A história dessa personagem que entrou para o dicionário está no livro Maria Baderna, de Silvério Corvisieri. O autor, italiano, foi deputado do Partido Comunista italiano. Para escrevê-lo, veio ao Brasil, e por meio de pesquisas em arquivos e jornais de época, resgatou a trajetória da jovem bailarina que empolgou a sociedade carioca dos primeiros anos do Segundo Reinado.
Marieta Baderna: antes do Brasil
Marietta (que no Brasil também era chamada de Maria) Baderna nasceu na cidade italiana de Castel San Giovanni, em 1828. Desde cedo mostrou inclinação para a dança, estudando com um reconhecido mestre da época, Carlo Blasis. Bonita e talentosa, já aos 15 anos era saudada como uma das revelaçíµes mais promissoras em Milão, sede do Scala, um dos teatros líricos mais importantes do mundo.
Depois de uma temporada de grande sucesso na Inglaterra, em 1847, Baderna voltou í Itália, mas por pouco tempo. Seu pai, Antonio, era republicano, e tinha sido derrotado no movimento democrático de 1848. Nesse período, a Itália passou por conflitos internos e ficou dividida, com parte de seu território sob dominação da íustria. Para fugir í repressão, Antonio Baderna levou a filha a aceitar um convite para se apresentar no Brasil, onde desembarcaram no ano seguinte.
Liberalismo X moralismo
Como primeira-bailarina do Scala, Marietta despertou desde o início a atenção dos brasileiros, que nunca tinham visto uma artista dessa categoria. No principal teatro carioca, o São Pedro d™Alcântara, conheceu uma formidável sequência de êxitos. Mas não sem obstáculos: um destes foi a epidemia de febre amarela que assolou o Rio em 1850, matando milhares de pessoas e, entre elas, 45 dos 55 artistas que tinham chegado com Baderna.
O autor do livro diz que Marietta tinha uma personalidade rebelde, vivia de maneira excessivamente liberal para o Brasil de D. Pedro II, Além de manter uma convivência livre com um amante francês, ela í s vezes dançava em bailes, praças e praias. Nessas ocasiíµes, longe da rigidez dos palcos, preferia os ritmos calientes como o sensual lundum, dança afrobrasileira praticada por escravos.
Inovadora, Baderna foi alvo de críticas ao introduzir elementos do lundum entre os passos da dança clássica – em meio a uma sociedade conservadora e escravista. Num ambiente de grande moralismo e preconceito (ao menos para efeito público), pode-se imaginar o escândalo quando, no Recife, em 1851, Baderna resolveu apresentar sua dança afro-brasileira. Apesar dos protestos racistas, a temporada foi mais um sucesso. E marcou o início do abrasileiramento da artista, cujo primeiro contato com as danças dos negros e mulatos tinha sido pela leitura das Cartas Chilenas, do poeta e inconfidente Tomás Antí´nio Gonzaga.
Preconceito e Sorriso ambíguo
Logo, porém, Baderna começou a sofrer a perseguição dos conservadores e moralistas. Para eles, a bailarina italiana representava um perigo ao futuro das novas geraçíµes, um mau exemplo. Começou a ser rejeitada pelos empresários e suas apresentaçíµes ficavam reduzidas em tempo e em segundo plano. Os seus fãs, já conhecidos como baderneiros, protestavam batendo os pés no chão e interrompendo os espetáculos. Ao término das apresentaçíµes, saíam pelas ruas da cidade batendo os pés e gritando o nome da artista.
Mas prevaleceu a vontade dos conservadores e os bons costumes foram salvaguardados. Marginalizada, e para muitos tida como prostituta, não coube a Marietta Baderna outro destino: com o pai ela voltou para a Itália e sua carreira entrou em decadência
Nos anos seguintes, o panorama artístico do Rio de Janeiro alterou-se. O público interessava-se cada vez mais pela ópera e pelas cantoras, o que levou í marginalização da dança. As referências í Baderna na imprensa escasseiam, sabendo-se porém que ainda estava no Rio, em 1856, mas inativa. Reapareceria na França, onde fez sua despedida dos palcos em 1865.
Depois, veio o silêncio, ajudando a alimentar o mito. O mito da bailarina que foi amiga do grande ator João Caetano, contemporânea de cantoras famosas como Candiani e elogiada por escritores e jornalistas como José de Alencar ou o Visconde do Rio Branco. Mito de uma mulher que ousou desafiar as normas de uma sociedade conservadora e escravista e cujo fantasma, segundo Corvisieri, ainda ronda no céu do Rio, com um sorriso ambíguo (…), como se quisesse conservar uma margem de vaga e etérea elegância continuando sua dança, estrela entre as estrelas.