Por alguns dias os povos latino-americanos se voltam para Buenos Aires como se fosse sua capital no “a-deus” a Diego Armando Maratona. ‘El diez, el diós’, tão pleno de virtudes quanto de vícios, assemelhando-se, nisso, aos imortais do Olimpo. Humano Deus. Tão argentino e, não obstante , tão “creollo”: Baixinho, atarracado, meio perrengue, sobrancelhas acentuadas, cabelo liso e basto, pele curtida pela origem, pelo sol, pelo sofrimento.
Somos um continente de contrastes, desde que “los conquistadores” aqui superpuseram seus Reinos, suas falas, suas crenças, suas peles brancas, sem jamais encobrir por inteiro o mundo fantástico do primitivo. Maradona é resquício deste primitivo asfixiado. Gabriel Garcia Marques traduziu isso em “Cem Anos de Solidão” e deu como exemplos os “causos” extraordinários que relata em seu discurso quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura:
“Antônio Pigafetta, um navegante florentino que acompanhou Magalhães na primeira viagem ao redor do mundo, escreveu em sua passagem por nossa América Meridional, uma crônica rigorosa que, no entanto, parece uma aventura da imaginação. Contou que havia visto porcos com o umbigo no lobo e uns pássaros sem patas, cujas fêmeas chocavam nas espáduas dos machos, e outros com aparência de alcatrazes, sem língua, cujos bicos pareciam uma colher. Contou que havia visto um animal com cabeça e com orelhas de mula, corpo de camelo, patas de cervo e relincho de cavalo. Conclui que colocaram um espelho diante do primeiro nativo que encontraram na Patagônia e que este, apavorado, perdeu a razão pelo medo de sua própria imagem”
Na verdade, somos latinos, por assim dizer. Embora tenhamos herdado o espanhol e o português do latim, aqui erigimos uma sociedade sui generis. Já os conquistadores ibéricos haviam adequado a latinidade aos seus humores, em função de sete séculos de presença árabe. Vários autores espanhóis insistem em diferenciar Espanha do resto da Europa Ocidental. Taís humores, aqui, se misturaram a outras experiências humanas de nativos e africanos transplantados, dando origem a culturas muito próprias. S.Huntington no seu célebre “O Choque das Civilizações” o reconhece. Somos uma das sete grandes referências culturais do mundo. E outro americano, Richard Morse, brasilianista, nos anos 1970, em seu “O Espelho de Próspero”, nos confronta com os Estados Unidos. Para tanto, nos identifica – até demais – com a cultura latina, embora fosse melhor falar em sincretismos e insiste que somos…superiores (!). Isso porque temos mais do que os gringos a capacidade de nos situarmos no mundo. Eles, na sua cidade…De qualquer forma, se nos Estados Unidos estamos em presença de uma expansão latitudinal anglo-saxônica, tão pragmática que faz da eficiência uma regra de vida, aqui o latinismo, já distinto da matriz cartesiana, mergulhou na serpente emplumada da Poesia numa celebração eterna. Para eles, anglo saxônicos, basta a vida, com bons resultados, daí retirando a conclusão que nós estamos condenados ao subdesenvolvimento. Para nós, segundo este autor, eles é que são um caso perdido para a civilização. Cá, nos consumimos em sentimentos e por isso inventamos o bolero, o tango, o samba canção e a bossa nova. Tudo para louvar o amor. Amor traído, contraído, distraído. Martim Fierro. A natureza exuberante contribuiu pra isso: Matas com infinitos tons de verdes em ramas e frondosas árvores, além de multicoloridas atrações em flores, frutos que substituíram a a maçã na voracidade da paixão, verões quentes e úmidos, ás vezes eternos. E que céus…!
“Nosso céu tem mais estrelas. Nossas várzeas têm mais flores. Nossos bosques têm mais vida. Nossa vida mais amores.”
Maradona não morreu, nem virou estrela. Ele é a própria alma da América Latina. Encantou o mundo e encantou-se, ontem, para a eternidade que o recolheu, sob o olhar comovido de um milhão de argentinos na Casa Rosada. Se fosse católico, virava santo. Mas como se identificava como tribal, bastar-lhe-á “la bendición de Francisco”.
Diego. Diez. diós…