Quando passamos por períodos de festividades e feriados envolvendo a história e datas oficiais do Brasil, é comum surgir reflexões e indagações: “A história tradicional é “verdadeira”? O que significa celebrar o 7 de setembro, o 15 de novembro ou a emancipação do município? Qual a relação disso tudo com minha identidade litorânea, gaúcha, brasileira, latino-americana e planetária?
Primeiramente, podemos destruir o tabu que a História tem algum comprometimento com a Verdade. O que entendemos como conceito científico da História está atrelada como uma disciplina das Ciências Humanas que se desenvolveram durante o século XIX. As fontes históricas estavam fundamentadas, principalmente, nos documentos históricos como uma fonte primária e confiável para narrar os acontecimentos e fatos de um determinado período. Aprendemos a respeitar o 7 de setembro como sendo a Independência do Brasil, promulgada oficialmente em 1822. Entretanto, esquecemos de questionar o significado da palavra “independência” e se realmente o Brasil e seu povo tornou-se “independente” com o brado do Ipiranga no furor de D. Pedro I: Independência ou Morte! A História torna-se uma narrativa, uma interpretação dos fatos com forte carga ideológica, cultural e social. O contestado “descobrimento” do Brasil tem uma versão descrita pelos europeus em diversos documentos como uma grande e valorosa “conquista”, por outro lado, os povos indígenas poderiam mencionar os mesmos acontecimentos com outra versão, a “invasão”, a perda do seu território e identidade e o inicio de um genocídio que dura mais de cinco séculos. A história oficial é apenas uma versão da História, pois dá visibilidade para a narrativa dos “vencedores” e não dos “vencidos”.
Novas metodologias no campo de pesquisa da historiografia têm sustentado paradigmas e outras interpretações sobre o passado quando privilegia caminhos alternativos como a história oral e a cultura material. Durante meados do século XX na França, a Escola dos Annales e seus pensadores foram os grandes responsáveis pela renovação nos métodos historiográficos. Começa a surgir nas narrativas novos sujeitos e protagonistas, os trabalhadores, as mulheres, os negros, os indígenas, as crianças e tantas pessoas “esquecidas” e “invisíveis” que jamais tiveram seu espaço nos livros. Quando são erigidos monumentos e datas históricas a preocupação das autoridades governamentais é despertar um sentimento de identidade nacional, em que os cidadãos sintam-se pertencentes a um povo, comunidade ou nação por intermédio da memória social. A história tem como objeto de estudo o passado e o seu registro enquanto a memória está presente na afetividade das comunidades como uma memória viva que se estabelece na relação entre o “esquecer” e o “lembrar”. Como diria a escritora Ecléa Bosi, na memória “só fica o que significa”.
A cidade tem história em cada rua, em cada esquina, em cada pedra. A cidade é um artefato vivo e dinâmico que se transforma cotidianamente. Por sofrer drasticamente com as modificações impostas pelos modelos econômicos é que se faz necessário preservar suas raízes históricas e culturais, os elementos de um patrimônio coletivo que pode se perder. Assim como criamos os filhos e filhas ensinando-lhes o valor dos costumes familiares e da tradição, podemos planejar uma cidade fundamentada em sua pedra angular: as HERANÇAS que deram significado para o lugar. Sem compreensão do PASSADO, não há possibilidade de FUTURO.
Um dos caminhos que podem revelar as riquezas perdidas das localidades é o registro das “Histórias dos Bairros”. Um projeto que propicie a entrevista com os idosos e idosas remontando o cenário originário do bairro, identificando as edificações mais antigas e as lideranças comunitárias, a benzedeira, o padeiro, a costureira, o leiteiro, o agricultor, o construtor, a professora, entre outros “heróis e heroínas” que não tiveram voz nos compêndios e discursos oficiais. Os bairros resguardam os patrimônios locais, um mosaico de expressões culturais que compõe a “alma” da cidade. Podemos explorar as comunidades rurais e os distritos do município para compreendermos as mudanças e permanências do período colonial, as pistas que os topônimos nos indicam como no caso da Itapeva (Ita= pedra, Peva ou Peba= Chata), Passo (Passagem) de Torres – município catarinense – e do Mampituba (ou Iboipetuba, o rio das cobras chatas) e as áreas de trabalho como a Salinas, Lomba da Usina, Curtume e Praia da Cal. A cultura pesqueira impregnada nas comunidades ribeirinhas como o Canto da Ronda ou no planejamento territorial do bairro Predial. Em Torres, alguns bairros contam a história das comunidades tradicionais e outros bairros contam a história da introdução e consolidação do turismo balnear e da usurpação do território. Modos de se expressar e falar diferentes num mesmo território, num sincretismo sociocultural único e peculiar. Como que as comunidades enxergam sua cidade quando percebem que seus destinos são decididos por aqueles que habitam esporadicamente as coberturas com suítes e piscinas nas “torres de concreto” ao invés de ecoar aos quatro cantos as demandas daqueles que buscam historicamente seu sustento nas pescarias dos “paredões” no topo das “torres naturais”. Um misto de servilismo e oportunidades na revoada do verão e a garantia de qualidade de vida e bem estar para as gerações futuras ainda permanece como uma dúvida. Assim como cada célula do corpo humano é fundamental para seu funcionamento, cada sujeito é importante para a História da sua família, da sua rua, do seu bairro e da sua cidade. Do marisqueiro da Furna Seca à imponência monárquica de D. Pedro I, de Torres para o mundo, cada um, cada lugar, constrói sua experiência a sua maneira trilhando o tortuoso caminho do tempo. “Os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me diz que somos feitos de histórias” advertia o pensador uruguaio – mais latino-americano que já existiu – Eduardo Galeano.