A origem do carnaval é remotíssima e consta que celebrava a primavera com ritos pagãos em devoção à fertilidade. Mas se o povo se diverte no carnaval, os intelectuais tentam interpretá-lo em seus significados mais profundos.
Recorro ao escritor Milton Ribeiro, de Porto Alegre, para assinalar dois estudiosos do carnaval: Mikail Baktin, célebre por seus ‘A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento’: o contexto de François Rabelais e o antropólogo brasileiro Roberto Damata , autor de Universo do Carnaval. Ambos destacam a importância da troca de papéis no carnaval. Homem vira mulher, o povo se veste de reis e rainhas, a ordem é invertida para revelar, talvez, sua própria essência.
“Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval, pela sua própria natureza, existe para todo o povo. Enquanto dura o carnaval, não se conhece outra vida senão a do carnaval. Impossível escapar a ela, pois o carnaval não tem nenhuma fronteira espacial. Durante a realização da festa, só se pode viver de acordo com suas leis, isto é, as leis da liberdade”, diz Bkttin.
Roberto Damata é considerado um dos melhores conhecedores do Brasil. Todos os carnavais nos brinda com uma pérola na grande imprensa. A desta semana é impagável, merece boa reprodução:
“… O carnaval é constituído e constitutivo daquilo que chamamos de “Brasil” ou “realidade brasileira”. Pois o que seria o Brasil sem carnaval, sem cachaça, sem futebol, sem macumba, sem jogo do bicho, sem sua ladra politicagem, sem jeitinho, sem “não fazer nada” e sem salvacionismos? Sem esse punhado de instituições órfãs de pedigree político-acadêmico que nossos “caga-regras” conhecem como a palma de suas mãos?
…O carnaval é o rito de passagem temporal que nos ajuda a transitar do Advento e, largando a carne, aceitamos as penitências de Dona Quaresma. Ele é também o que Alexis de Tocqueville chamava, com Rousseau, de “hábito do coração”, e Nélson Rodrigues denominava “óbvio ululante” — essa coisa tão próxima que não é — ou não pode — ser vista.
Quem sabe você que olha sem ler estas linhas não gostaria de ouvir esse óbvio ululante do carnaval, simplesmente um grito para compreender o Brasil? Pois, para parafrasear Jorge Luís Borges, a despeito do sentimento derrotista, algumas pessoas descobriam verdades eternas no Rio de Janeiro e no Brasil…
No caso do carnaval, o óbvio ululante não é seu estudo como festa popular de feitio “alienado” e “pré-político”, prestes a ser comido pela indústria de comunicação e pelo discurso ainda mais fantasioso e cretino dos salvadores da pátria. Muito pelo contrário. É procurar vê-lo como um dos fios com que construímos o lado mais denso da nossa identidade.”
O Brasil mergulha, portanto, neste fim de semana estendido até a Quarta-Feira de Cinzas, em busca de si mesmo. Celebra-se em festas e requebres permissivos para desopilar das tensões de um período doloroso de pandemia que culminou num ano de hesitações, que desembocou no 8 de janeiro.
Acho que voltaremos revigorados semana que vem. Daí falaremos de coisas sérias como Presidencialismo de Coalizão, Âncora Fiscal, Genocídio dos Povos Originários e a indefectível corrupção envolvendo o escândalo do ouro que deveria ter sido controlado pelo Banco Central mas que correu solto pelos descaminhos da Amazônia. Por enquanto, vamos ao espírito carnavalesco que, para felicidade popular retorna aos blocos de rua no seu velho estilo do começo do século passado. Não em Torres, lamentavelmente, que perde com isso um ponto importante que bem poderia incrementar o turismo nesta época. Mas o mundo gira, a Lusitana roda e, como dizia Galileu à saída da Inquisição, onde negara o movimento da terra em torno do Sol: eppure se muove.