OPINIÃO – Razão, sensibilidade…. E o que mais, mesmo?

A Vontade de Potência, segundo Nietzsche, é o impulso mais fundamental do ser. Não se trata apenas do desejo de viver, mas de viver plenamente. É uma vontade que se volta para este mundo, para o fluxo de imagens fortes que nos liga à vida; que nos dá força e objetivo.

9 de dezembro de 2022

Muitos viram o filme inspirado num romance da inglesa Jane Austin – “Razão e Sensibilidade” – e se emocionaram  com imagens e situações ali mostradas. O filme, ambientado na Inglaterra vitoriana (Sec. XIX),  retoma uma velha dicotomia humana, generalizada no pensamento ocidental, entre corpo e alma. Paradoxalmente, esta mesma cultura, irrigada pela fé cristã, insiste na criação do homem à imagem e semelhança de Deus. Mas Deus é trínico, não binário. A Trindade Mística  veio à tona no ano 38, no  Primeiro Concílio de Constantinopla, como  “três hipóstases em uma ousia (substância)” e foi convertido em dogma em 325 no Concílio de Nicéia.

Diante disso, muitos estudiosos contemporâneos  preferem, sem êxito, definir o homem como aquele que quer (vontade), sente (emoção) e pensa (razão). ,Ainda assim, persiste na Filosofia e na Política a oposição Vontade x Razão, afirmando esta como o único caminho da virtude. A vontade seria o campo do querer, excitado pelo desejo,  através do qual rebrotam paixões avassaladoras que movem o homem à ação. Segundo o  Dicionário Houaiss, a palavra vontade, oriunda de voluntas, significa “uma aspiração humana diante de algo que corresponda ao esperado; capacidade individual de escolher aquilo que bem entende.”. Vontade é ânimo,  determinação e fé, daí derivando a expressão “força de vontade” ou a que diz que a “fé remove montanhas”. Neste sentido, senão uma verdade, pelo menos um verdadeiro saber, aquele que move o homem. Com o advento da Filosofia no século V AC, entretanto, a razão se interpôs imperativamente como fundamento da verdade, desdobrando-se ao longo dos séculos como  conhecimento científico. Com ele erigiu-se a Racionalidade Moderna.  no sendeiro  das Grandes Navegações, hoje sob velas siderais, e o Iluminismo. Mas esta mesma Modernidade amadureceu e acabou calcinando-se,  deixando pouco espaço à imaginação e à vontade, trazendo de volta o apelo ancestral à paixão. Jà à época do grande Emmanuel Kant um Filósofo menor, F. Jacobi (1743-1819), protestou contra os excessos da razão, reabrindo o caminho à espiritualidade. Mais realista, Arthur Schopenhauer (1788-1860) já advertia: “A razão, tão venerada pelos filósofos, é apenas um “livro caixa” que registra entradas e saídas de informações. Ela tem utilidade, mas é superestimada. A razão cura doenças, constrói cidades e máquinas, mas é a vontade que lança as bombas e declara as guerras. A vontade irracional se disfarça em todo discurso supostamente racional”. Mais tarde, outro filósofo, F. Nietzche (1844-1900), levaria a crítica da cultura ocidental às ultimas consequências. Para ele, a idolatria da razão, associada ao “vale de lágrimas” do cristianismo, levaram à decadência do Ocidente. Propugnava pelo retorno ao culto a Dionísio, deus grego do vinho e da celebração, em detrimento de Apolo e propôs a substituição da Vontade de Verdade pela Vontade de Potência, ante-sala do super homem inspirador do nazismo:

A Vontade de Potência, segundo Nietzsche, é o impulso mais fundamental do ser. Não se trata apenas do desejo de viver, mas de viver plenamente. É uma vontade que se volta para este mundo, para o fluxo de imagens fortes que nos liga à vida; que nos dá força e objetivo. (…). Nietzsche afirma que todo ser deseja aumentar seu poder de ação, e não “saber a verdade” — este último, um objetivo que afasta a autenticidade. As coisas que fazem nascer a força da vontade são diferentes em cada um; se ligam às vivências e características individuais.

Esta nova atitude da Filosofia acabou transbordando para novas  percepções da Crítica e da Política.  A modernidade exuberante deu lugar à fermentação de novas ideias com vistas a  redefini-la.Com efeito, o mundo mudou tão profunda e tão rapidamente nos dois últimos séculos, traduzindo-se pelo salto da população de menos de 1 bilhão de almas no planeta para 8 bilhões, com transformações nas técnicas de produção e relações sociais, com inevitáveis crises e arritmias, que não há mais como pensá-lo como outrora. A  Pós modernidade é uma espécie de umbral desta nova era. Nela, tudo o que é sólido desmancha no ar”. Vira “modernidade líquida”, ou mero espectro. Nações e grupos sociais incapazes de se ajustar a estes turbulentos tempos se prostram em depressão, despertando, voluntariosamente, para irrupções violentas alimentadas pela crítica ácida à realidade. Neste contexto, emergem tendências políticas extremadas, tanto à esquerda, clamando por revolução, quando à direita, exigindo restauração. Esta, sobretudo, que já se manifestara com virulência há um século, com Mussolini e Hitler, vem crescendo nas últimas décadas no mundo ocidental e se organiza em escala internacional para se afirmar como única alternativa ao desencanto. Está no Poder na Hungria, na Itália, na Suécia, passou, com Trump, nos Estados Unidos e com Bolsonaro, no Brasil, e segue seu curso de enaltecimento da vontade em oposição às razões, sejam  da Ciência, do  Estado ou das instituições civis. Todas evocativas do fenômeno fascista. Semana passada o ex Presidente Trump renegou a própria Constituição dos Estados Unidos. Aqui, fileiras de indignados com a vitória de Lula à Presidência penduram-se nos quartéis renegando a democracia. Processo difícil de compreender e mais difícil de reorientar. É mais um sintoma das mudanças do que utopia reformadora da sociedade.

O que falta, talvez, ao mundo contemporâneo seja retomar a dimensão reflexiva do homem como capaz de arbitrar as relações entre  razão e  vontade, sem cair no retrocesso do voluntarismo irracional, que mais do que promessa, pode acabar  em tragédia. Recuperar o “terceiro elemento”…O novo nunca vem  da novidade mas como resultado sintético entre o que foi e o que virá, de forma a preservar o continuum civilizatório.




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