Há algumas décadas, quando a desorganização do mundo se antecipava nas telas com “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick, numa revelação chocante da violência gratuita, a ONU voltou-se ao tema da Tolerância. Chegou a adotar uma ‘Carta da Tolerância’, aprovada em Assembleia Geral e dedicou o ano de 1995 para divulgá-la e implementá-la através da promoção da educação para a Paz. Não funcionou muito bem. Alguns críticos alegaram que a convivência humana exigia mais do que tolerância. Requeria respeito à diversidade e sua consagração através da conquista de direitos. Começava a nascer uma geração que, sem negar o caráter de classe das sociedades contemporâneas, voltava-se à afirmação das identidades: Mulher, Negro, Índio, LGBT, imigrantes etc. A própria esquerda, no mundo inteiro, desfalcada de sua histórica vertente sindical pelas mudanças tecnológicas operadas na Indústria e crescente favelização dos grandes centros urbanos, descaracterizando tradicionais bairros operários, nos quais vicejava a “consciência de classe”, além de abalada pelo colapso da União Soviética, entregava-se a esta Agenda.
A questão da intolerância, entretanto, voltou ao debate nos últimos anos, agora associando-se às correntes do extremismo político, tal como ocorrera no início do século passado. Isso porque a crise econômica se aprofundou, sobretudo na pandemia, a que se sucedeu a Guerra na Ucrânia, e elevou a fermentação social em todo o mundo. O atentado às Torres Gêmeas de N.York, em 2001, foi um marco neste processo. Reafirmou a História feita de conflitos. Tornou visível a insatisfação de algumas partes do globo, expressadas por seus segmentos mais extremados, com a glamourizada globalização ocidental , o que acabou deflagrando uma sucessão de ofensivas militares sobre Oriente Médio que trouxe à tona uma onda inusitada de violências regionais. Com isso o número de refugiados cresceu como nunca na História da humanidade. Pelo menos 108,4 milhões de pessoas em todo o mundo foram forçadas a deixar suas casas. Entre elas estão 35,3 milhões de refugiados. Há também 4,4 milhões de apátridas, pessoas a quem foi negada a nacionalidade e que não têm acesso a direitos básicos como educação, saúde, emprego e liberdade de movimento. A intolerância recrudesceu neste meio e, com isso, vem se aprofundando e realimentando exacerbações. No países receptores destes asilados cresceu a xenofobia que hoje governa não só a Hungria e Itália, mas até países escandinavos.
Com outras dicções, o horror aos “outros”, com seus respectivos dialetos chegou aos Estados Unidos de Trump e ao Brasil de Bolsonaro, aqui associando a intolerância aos movimentos sociais organizados em defesa do meio ambiente, das minorias, dos Direitos Humanos, e à própria esquerda. Candidatos de extrema direita, intolerantes, emergem, também, em vários países da América Latina e um deles já é o terceiro colocado para as próximas eleições, em outubro, na Argentina.
Diante disso, uma pergunta que fica no ar é: Quais as raízes desta intolerância que se dissemina em fake news pelas redes, alimentando ódios e alarma incautos com descrições ameaçadoras sobre o caráter negativo da presença ora de árabes e negros na Europa, ora de negros e latinos nos Estados Unidos, ora da esquerda no Brasil, ora até de membros do Poder Judiciário responsáveis pelo império da Lei, ora dos russos…?
A Psicologia Social, hoje, complementa a análise sociológica do século passado e vê na rejeição ao Outro uma manifestação de dois processos pessoais: Um, defendido pelo filósofo dinamarquês P.Sloterdjik, que sustenta ter a cultura uma espécie de sistema imunológico que rejeita o Outro; o segundo, que lhe complementa, percebe na natureza humana uma tendência a se supervalorizar como mecanismo de defesa, sempre nos marcos de um conservadorismo homeostático que a mantém em equilíbrio instável, pronto para explodir diante de mudanças externas. Eis aí, talvez, a origem do medo às mudanças, que leva ao horror à novidade.
Neste Admirável Mundo Novo da Aldeia Global, estamos condenados a conviver com isso, enaltecendo, cada vez mais, a importância de intervenções pontuais como seu contraponto institucional: Micro Política do Cotidiano para a Paz. Mais Políticas Públicas e menos heroísmo. A verdade é que teremos que voltar, senão aos sermões da confraternização universal de Cristo – a Boa Nova -, à Carta da Tolerância da ONU, como mecanismo de descongestão do pavor à diversidade. Somos todos irmãos.