Palpite infeliz de um tango errante

"Na semana anterior, a Mídia repercutiu uma afirmação jactanciosa do Presidente Alberto Fernández, da Argentina, atribuída ao escritor Octavio Paz, dizendo que os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros da selva, e os argentinos... chegaram de barco."

15 de junho de 2021

Este colunista está de olho em tudo o que vai por este vasto mundo de Deus e dos Poetas. Hoje deito a pena além dos muros. “Palpite infeliz” é o título de uma canção de Noel Rosa, em sua histórica polêmica com outro sambista dos anos 1920/30, Wilson Martins, quando este o criticava por ter se inspirado no morro. Recupero o título para comentar mal fadada opinião do Presidente Fernández, da Argentina.

Na semana anterior, a Mídia repercutiu uma afirmação jactanciosa do Presidente Alberto Fernández, da Argentina, atribuída ao escritor Octavio Paz, dizendo que os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros da selva, e os argentinos… chegaram de barco.  Caiu mal. Palpite infeliz. Tango errante.  Começando que o Presidente argentino se disse “europeísta”, ao receber o Primeiro Ministro da Espanha. Papo vira-lata, que escondeu, na verdade um pensamento dito “etnocentrista”, negador do reconhecimento da pluralidade cultural dos povos, digno do século XIX. Abriu mão de sua “pertenência” americana. Errou, também, sobre o autor da frase. Pecado menor. Tudo desastre. Foi muito criticado, pediu desculpas, mas não se fez de rogado: – “Aos incomodados, minhas escusas…” Ah é.!? Então aí vai: bateu, levou! Todos sabem, afinal, do “estilo” dos argentinos, muito senhores de si, com boa dose de auto centramento, para não dizer soberba. Há, até, uma piada que corre o continente, contando que, quando “los hermanos”, tomados por alguma depressão ou dor insuportável, decidem se suicidar, sobem sobre sua própria auto estima e se atiram ao solo…Nem tanto…Nem tanto…Mas há um pouco de verdade na afirmação de Fernández, embora isso não diga tudo sobre os argentinos. Um grande Presidente deles, de 1868 a 1874, homem de elevadas letras, Domingos F. Sarmiento, autor de várias obras, dentre elas “Facundo”, mudou a fisionomia social e cultural de seu país. Ele está por trás da afirmação de Fernandes.

Sarmiento é apontado como um dos maiores expoentes do romantismo argentino, devido ao seu relevante papel na chamada Geração de 1837. Nos últimos anos de sua vida, aproximou-se do positivismo, que deitaria influências no Rio Grande do Sul, como bem atesta seu último livro: “Conflictos y armonías de las Razas de América”. Ele debitava a origem dos males da Argentina à incivilidade impetuosa do “gaucho” – retratada por José Hernandez em “Martim Fierro”-  e à ignorância do povo. Com base nisso, revolucionou a educação, acabou com o analfabetismo, fundou no seu Governo mais de 100 bibliotecas. Junto, para “branquear” o país, estimulou a imigração europeia em larga escala, trazendo como consequência uma separação da capital, Buenos Aires – “donde los porteños”- , até hoje centro demográfico e cultural do país, do resto do país. Fernández ao mexer com isso, mais do que suscetibilidades externas, mexe num vespeiro interno. Seria, aqui, oportuno apartear-lhe, lembrando El Rei de Espanha:: – “?Por que no callas, Fernández?”.

Mas, a propósito de pluralidades étnicas e culturais, é sempre bom lembrar, com efeito, que “el Pueblo” latino-americano, antes de o ser, já era um “Pueblo” originário, sobretudo no México e nos Andes, com alto nível civilizacional, numa época em que a Europa, com exceção de Portugal e Espanha, sequer tinha Estados Nacionais organizados. Sempre recomendo que, em vez de Cancún, os brasileiros visitem a cidade do México e lá passem, no mínimo, três dias no Museu de Antropologia. Vão descobrir que dos 20 milhões de astecas à época do “Descobrimento”, nem 10% sobreviveu, pouco tempo depois, à violência e à contaminação. Até hoje o México tem população menor do que o Brasil, então bem menos povoado. Dos Andes, onde construíram o Império Inca, desceram os nativos para litoral Atlântico pelo Caminho do Peabiru, os quais talvez tenham se encontrado no extremo sul do continente com outras correntes oriundas dos mapuches chilenos, cujo último líder, Caupolicán, foi empalado pelos colonizadores.

Quanto ao Brasil, se nascemos nas selvas, fomos nos acrescentando por mares agitados pelo açoite do colonialismo lusitano e da escravidão negra -que lhe acompanhou e que acabou cedendo espaço para a imigração europeia rumo à modernidade autoritária da República-. Acabamos nesta complexa “gentidade em formação”, como dizia Darcy Ribeiro, que ousou contrariar as ideias dominantes na Europa que afirmavam ser impossível montar um sociedade industrial nos trópicos com base em gente mestiça. Deixamos, embora com grande paixão pelos hermanos,  los porteños para trás,

Destes grandes vértices latino-americanos, Tenochtitlan, Andes, Amazônia desdobraram-se ou somaram-se outras experiências inéditas que nos conformam numa rede sincrética. O Haiti, formado por escravos africanos que lutaram contra a França. Argentina e Uruguai, com tão forte presença europeia que seus estudantes nos Estados Unidos têm dificuldade em se inserir nos movimentos latinos. A Nação rio-grandense, inserida no Grande Pampa, igualmente, pois sempre lhes foi tão próxima. Tudo isso é América Latina que, com os pés em suas origens primitivas ainda luta pela sua verdadeira emancipação nacional, preferindo sua penada alma à razão iluminista, a Poesia à prosa neocolonizadora, La Paz á Santa Cruz de la Sierra, Pedro à Fujimore,  Marti à Sarmiento, Sandino à Pinochet, Zumbi a Domingos Jorge Velho, o morro à Faria Lima..

Tome tento, Sr. Fernández: “Ojo!”




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