Cedo aprendemos o significado de “Utopia”, aquele lugar ideal com que sonhamos reconstruir o mundo para melhor. O nome ficou consagrado depois de ter intitulado o principal livro de Thomaz Morus, um nobre inglês que viveu no conturbado século XVI na Inglaterra e, mercê de sua integridade moral, acabou condenado à morte. Triste fim de muitos que se guiam na vida pelo chamado do coração à fraternidade entre os homens, tal como as recentes vítimas, Dom Philips e Bruno Pereira, no interior da Amazônia. Estavam trabalhando pelo bem da humanidade na defesa da floresta e seus povos primitivos. Foram brutalmente abatidos. Não eram aventureiros como vaticinou, lamentavelmente, o Presidente Bolsonaro. Eram, talvez, “utópicos”. Mais recentemente, outro grande intelectual, Eduardo Galeano, redefiniu o lugar da Utopia. Como assim, um não lugar que tem um lugar, pois este o significado etimológico da palavra? Perfeitamente. Dizia ele, repetindo palavras que ouviu de um jornalista: “A utopia é um lampião que ilumina o caminho que devemos trilhar”. Os iluministas diziam o mesmo, com suas “luzes”, Voltaire o primeiro deles. Com isso, tomando a utopia como um farol, vamos aprendendo a não cair no que um autor contemporâneo denomina “o viés da confirmação”, um círculo de aço sobre verdades absolutas que acaba nos conduzindo ao isolamento e que se reproduz, desde o “controlador doméstico”, até a manipuladores de círculos sectários que vão de religiões à ideologias: Jim Jones e Hitler. Este mesmo autor, S. Pinker, escreveu, recentemente, um livro, “O novo iluminismo”, no qual rebate o pessimismo que vem tomando conta do mundo ocidental desde o último quartel do século passado – que ter-se-ia inaugurado com “O mal estar de civilização”, de Sigmund Freud – e que ganhou corpo com a crítica marxista ao capitalismo que a configurou nos últimos dois séculos:
“…O novo Iluminismo, uma original avaliação da condição humana no terceiro milênio, o cientista cognitivo Steven Pinker nos incita a rechaçar manchetes alarmistas e profecias apocalípticas, que vicejam nos dias atuais e influenciam nossa visão de mundo. (…)Nadando contra as correntes da natureza humana exploradas por demagogos ― tribalismo, autoritarismo, demonização, pensamento mágico ―, o projeto iluminista é atacado por religiosos, políticos e intelectuais pessimistas que insistem que a civilização ocidental passa por um inexorável processo de declínio. Mas basta olhar os dados: eles indicam que, com o avanço do conhecimento, as pessoas estão de fato vivendo mais e melhor” The New York Times Book Review
A verdade é que o mundo não anda tão bem quanto o pinta Pinker e, por isso mesmo, as interpretações proliferam: Guerras, desemprego-miséria-fome, corrupção e crise.
Dentre os pessimistas, releva a obra geminal “1984”, de George Orwell, levada às telas, para espanto dos espectadores, nos anos 1970. Hoje, é vista com naturalidade, como também outro filme clássico, “Laranja Mecânica”, tais as mudanças com as quais já nos acostumamos, dentre outras, a invasão sobre nossa privacidade e interferência dos logaritmos sobre nossas opções diárias que imaginávamos ser fruto do livre arbítrio. Estamos como que “chipados”. Diante disso, os críticos sociais são, cada vez mais, infensos ao “viés da confirmação” que os balcanizava em fórmulas ideais quanto ao futuro. Vão se dando conta de que não há garantia de que as utopias renovadoras recobrem alguma força e admitem que o futuro de muitas sociedades, mesmo desenvolvidas, pode ser o caos. Veja—se, por exemplo, este desabafo de um dos mais conceituados sociólogos contemporâneos, Manoel Castells, no seu artigo “A hipótese do caos”:
“Em tempos de incertezas costuma-se citar Gramsci quando não se sabe o que dizer. Em particular, sua célebre assertiva de que a velha ordem já não existe e a nova ainda está para nascer. O que pressupõe a necessidade de uma nova ordem depois da crise. Mas não se contempla a hipótese do caos. Aposta-se no surgimento dessa nova ordem de uma nova política que substitua a obsoleta democracia liberal que, manifestamente, está caindo aos pedaços em todo o mundo, porque deixa de existir no único lugar em que pode perdurar: a mente dos cidadãos.”
Na mesma linha, outro autor, há mais tempo advertia para a possibilidade da anarquia tomar conta do mundo, à semelhança de várias séries na NETFLIX, como “Marselha”, além de filmes distópicos que temos assistido mostrando grandes cidades em ruínas tomadas de assalto por bandos armados. Falo e recomendo, especificamente, um autor, Robert Kaplan que mostra como o tribalismo e a violência vão ocupando o lugar da sociedade civil organizada, articulada ao Estado, que conhecemos no século XX. A propósito, outra autora, brasileira, Eliane Brum, registrou também seu desencanto com o mundo atual num artigo de 2015, sob o título “A boçalidade do mal”. Toma ela emprestado de Hanna Arendt a ideia de que o mal não é uma marca de Caim que recai sobre enjeitados da sociedade, mas uma simples adequação do homem comum ao cumprimento da ordem. Pessoas simples e banais que perderam a capacidade crítica e são, mecânica e protocolarmente, capazes das maiores barbaridades contra a humanidade, como, por exemplo, as que induziam os carrascos nazistas a zelar pelo bom funcionamento dos fornos de cremação de judeus, dissidentes e homossexuais nos campos de concentração. E há mais fornos crepitando mundo afora do que aqueles já apagados pela História. No século XIX, aliás, donos de ferrovias importavam milhares de múmias desenterradas das areias do Egito para compensar a falta de lenha nas caldeiras de suas locomotivas. “O tempo não para”. Não só a guerra faz cadáveres carbonizados. Também a civilização…