O Brasil entrou no dia primeiro do ano não apenas num novo Governo, do Presidente Jair Bolsonaro, mas num novo tempo. Diria: Incerto, mas prenhe de possibilidades. Ninguém sabe se dará errado ou certo, nem para quem estará melhor ou pior. Alguns, mais entusiasmados, com estes ventos, falam até numa “revolução”, equivalente, embora através do voto na urna, à Revolução de 1930, comandada por Getúlio Vargas, que soterrou a República Velha do “Café com Leite”, quando as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais se revezavam, “à bico de pena”, no poder. Segundo eles, a redemocratização de 1985, consagrada pela Constituição de 1988, havia mergulhado a vida pública num sistema de coalizão criminosa dos políticos, máxime no período “socialista” dos ex Presidentes Lula e Dilma, levando o país ao caos. Agora, “graças à Deus” e à vontade da maioria dos eleitores, a redenção. E a promessa de que “nunca mais voltaremos ao socialismo”.
Nada a acrescentar sobre a renovação conservadora em curso, embora considere exagerada a ideia de que se equivalham, ainda que contraditoriamente, pois que inspirada num confessionalismo religioso estranho àquela época, dominada pelo positivismo, claramente laico, cevado pela íntima relação entre os militares e políticos republicanos no Governo do Rio Grande do Sul, levada por Vargas ao Palácio do Catete. Este processo, sempre bom lembrar, remodelou a economia, a sociedade e o Estado no Brasil trazendo no seu bojo um salto da população de cerca de 30 milhões de pessoas, maior parte vivendo à margem de qualquer perspectiva no campo, para 200 milhões, no ano 2000, eminentemente urbanos, numa épica inédita de crescimento, na ordem de 6,5% ao ano, ininterruptamente. Graças a isso fomos o único país ao sul do Equador, até 1980, a superar o círculo vicioso do subdesenvolvimento, vindo a se situar, por décadas, entre as dez maiores economias do mundo. Não será, pois, fácil reeditar este périplo histórico.
O espírito do atual governo está, aliás, mais próximo mesmo dos tempos do Império, quando Igreja e Estado estavam interligados e o país mergulhado num sonolento regime escravocrata. Mas entende-se, dada a religiosidade do povo brasileiro, ora inclinado ao neopetencostismo tupiniquim das Igrejas Evangélicas, mais aproximado ao Velho Testamento – que, dentro em breve, ultrapassará os números de católicos tradicionais. Ora, este “retorno” moral vem a calhar, não só diante das tensões provocadas pelos novos valores da sociedade pós moderna, como pelo sentimento da necessidade de reforço da autoridade, seja pública, seja familiar, extraviada neste processo. Acrescente-se o fato, nada desprezível, de que a Igreja de Roma, desde o Concílio Vaticano II, conclamado por João XXIII, vem flexibilizando sua percepção das transformações sociais em curso, vindo a aproximar-se, principalmente no Brasil, mais às demandas sociais por justiça social terrena do que à salvação das almas. Isso deixou uma lacuna no universo cultural do país, assolado, de resto, pela maior recessão de sua história, e esta lacuna está sendo preenchida pela renovação conservadora. Se isso funcionará, só o tempo dirá. Digo, apenas, que é difícil. Palavras, leva-as o vento. Trata-se, agora, não de combater supostos inimigos com uma retórica ufanista retumbante, mas de ações de governo. Estas, sim, modelam uma intenção.
E, aqui, a correção: O Brasil nunca foi socialista, apesar do enorme peso do Estado na economia e na vida de cada um. Isso tem muitas explicações, dentre elas o patrimonialismo inerente à nossa formação. Tivemos, sim, ao longo da História dois momentos associados à uma certa ideia de esquerda, ambas muito distintas, tanto interna quanto externamente: a Era Vargas/Jango, de 1930 a 1964 e a era Lula/Dilma de 2003-2016. Nestes períodos houve, sim, uma rejeição ao liberalismo como inspiração soberana sobre os mercados, tão ao gosto dos empresários e, consequentemente, um forte intervencionismo estatal, seja na promoção da cidadania, maior na era petista, seja no estímulo ao desenvolvimento econômico, era varguista. Ser antiliberal, entretanto, não se reduz à conversão ao socialismo. O Estado de Bem Estar, da Europa e Estados Unidos, foi tanto contra o liberalismo como contra o socialismo. Nossa experiência jamais ultrapassou os limites da inserção no mundo ocidental e seus valores. Nos dois momentos citados fomos muito mais uma tentativa tropical de edição deste Estado de Bem Estar do que qualquer outra coisa.
O socialismo, vigente ainda em vários países do mundo, é outra coisa, gerada, via de regra, pelo assalto ao poder por meios violentos por um grupo de fortes convicções ideológicas que instaura, prévia liquidação formal das elites econômicas dominantes, a seguir, um regime de Partido único voltado à gestão de uma economia e sociedade centralmente planificada. A China não é exceção, embora tenha aberto o mercado à globalização privada. Acabo de ler, a propósito, um livro – “A lanterna mágica de Molotov”, Raquel Ponlonsky, Ed.Todavia -, que é uma viagem aos intestinos da Rússia soviética – URSS – , que desapareceu em 1991. O tal Molotov, cuja tradução é “martelo” e que deu nome ao “coquetel molotov”, tão usado em manifestações de rua, era o braço direito de Stalin, que sucedeu Lênin no comando do comunismo não só interno mas do mundo inteiro, até sua morte em 1953. Suas iniciais, IM, apostas nos milhões de sentenças de morte eram as mesmas de “condenado à morte” em russo, e levaram aos porões do regime não só a família real dos Romanof, nem apenas a burguesia urbana e os gulagues rurais, mas grande parte dos próprios militantes do Partido Comunista postos em desgraça para a glorificação de Stalin. Estimativa: 20 milhões de mortos…
Ora, o Brasil jamais passou por isso. E, se é válido, como diz o Presidente Bolsonaro, que nunca conhecemos a verdadeira ditadura, mais válido ainda seria dizer que nunca chegamos, nem perto, do socialismo.