Sobrevivemos, os aptos a lerem esta coluna, eis que muitos se perderam pelo caminho como “sôbolos rios” em fuga para o Mar Oceano, à pandemia do COVID. Ultrapassamos o setembro tempestuoso, sob “a luz difusa de um abajur lilaz”. A Constituição e o bom senso, contudo, venceram. E ainda padecemos, em maior ou menor grau, às agruras da crise, mas cá estamos na esperança de um verão glorioso. Já dá pra sentir o calorzinho, entremeado, ainda, por madrugadas frias, ventanias ocasionais e algumas chuvas. Somos o Portal das Solidões, apertados entre a Serra Geral e o Atlântico, sempre sujeitos à intempérie. Mas ele, o Doutor Verão, está chegando, carregado de promessas quando muitos amores serão encomendados para o resto das enlaçadas vidas. No Finados virão os veranistas habituais arejar as casas, tirar o mofo das cobertas e arrumar os jardins para o começo da temporada. Sempre muita alegria Tempos de renovar o estoque de felicidades. E ler muitos livros…
Quando eu falo em veraneio sempre me veem à cabeça as crônicas do saudoso Ruy R. Ruschel, o qual insistia no binômio turismo/cultura para o futuro de Torres. Foram estas advertências que nos levaram, um grupo de escritores, artistas e jornalistas, a criarmos o “Movimento Torres Além Veraneio”, hoje coordenado pela Débora Fernandes, com o intuito de chamar a atenção para a necessidade de escorarmos os Planos de Turismo com maior atenção à cultura. Ela ocupará, cada vez mais, pela nossa capacidade de situá-la dinamicamente no tecido turístico, o lugar que a mãe de Deus nos brindou com a natureza. Não temos sido lá muito louvados pela atual Administração com a atenção devida aos artistas e intelectuais da cidade. Parece que as autoridades ainda acham que cultura é diletantismo de boêmios ou distração infanto-juvenil, embora a nomeação de uma Diretora de Cultura reacenda nossas expectativas.
Foram nossos ares que iluminaram grandes escritores em suas consagradas obras, dentre eles o próprio Érico Veríssmo, José Paulo Bisol, ativo membro do Grupo Quixote, de Porto Alegre, recentemente falecido, Alfredo Jacques, Garcia da Rosa, Dante de Laytano, , dentre tantos outros. E nunca esqueço da Ester Lia, nossa grande promessa…E como não lembrar da Lya Luft?
Destaque especial tem cumprido nesta valorização cultural da cidade de Torres a CULTURAL FM, graças ao empenho e arte de seus criadores, o Nelson Peres, que nos deixou recentemente, e o Jose Nilton Teixeira. Preocupa-nos, a propósito, o destino desta rádio à vista da crise que afeta todos os meios de comunicação do país. Onde andará, aliás, “o melhor homem de Torres”, o Inaudi Ferrari, tão distante, ultimamente, de nosso convívio? Pois lá estava ele, junto com Roseli Ferrari, a mais bela voz ao sul do Brasil, na Cultural FM, durante anos, com seu Clube da Poesia estimulando versejadores. Aquela iniciativa, além de histórica, levou à criação do “Café com Poesia”, em plena atividade, o “Poesia na Escola”, com várias revelações, dentre elas Dudu Jaques, que, com Joaquim Moncks viriam a lançar o FAROL LITERÁRIO em 2017, já com três edições anuais, hoje transformado em Programa Semanal de alcance nacional na Rede Estação Democracia. Música, cinema e teatro acompanharam estes últimos vinte anos e deram muita vida à Torres e Região. Há que retomar este impulso e fazer cada vez mais.
Em homenagem a todo este processo trago, hoje, uma das melhores escritoras que aqui temos, sempre concisa mas surpreendente, com vários livros publicados e suas acutilantes minicrônicas diárias, última delas que transcrevo para nossa delícia literária da semana e testemunho de que auto-ajuda nunca foi literatura. Abro, assim, a temporada das Feiras do Livro em várias das nossas cidades.
MINHA MORADA, de Solange Carlos Borges*
Meu corpo é minha morada, o lugar em que habito. Faz tempo que o espelho e as fotos não representam o que sinto que sou. De tanto olhar, pois não vivo sem espelhos, espalhados pela casa, já estou me acostumando com a velha de pele manchada e enrugada. Muitas vezes sou até mais velha que a senhora do espelho e das fotos. Noutras sou uma jovem presa nesse corpo antigo que me prende, que me limita.
Meu corpo físico, magro e sem dores, me levava por onde eu queria ir. Subia morros, árvores e telhados, dava volta na Lagoa sem cansaço, as calçadas eram o lugar em que meus passos rápidos ultrapassavam caminhantes. Eis que, o lado direito do corpo em que habito há setenta e oito anos incompletos, me surpreende com uma incômoda dor no ombro e, agora um joelho cuja dobradiça destrambelhou. A dor no ombro, se espalha e dificulta o trabalho da mão na lida do dia a dia. O joelho com as dobradiças gastas, impedem a caminhada com meus cães e as saídas obrigatórias do dia a dia.
Tudo isso e, certamente outras incapacidades virão, me faz lembrar o ditado que minhas amigas não gostavam quando eu afirmava “Tá ruim hoje? Aproveita que amanhã será pior!”
E está e estará.
* (inspirada na crônica de David Coimbra- 04/10/21 ZH)