Levantando o dedo
Após minha aventura de passar alguns dias pela pacata cidade de Catingueira (PB), e dormir em cima da serra que já por lá, segui meu rumo sem rumo. Eu ainda não tinha certeza de qual seria meu próximo destino. Como ainda era cedo, não me preocupei nada com isso. Eu estava me adentrando casa vez mais no sertão paraibano, desejando chegar em algum momento de novo no Cariri Cearense. Mas quando isso iria acontecer, eu ainda não sabia. Me despedi dos amigos que fiz por Catingueira e, como já era de costume, fiquei na saída da cidade com meu dedo levantado e o sorriso no rosto esperando alguém me dar carona. Pegar carona é um exercício espiritual. Para que as coisas deem certo, a energia do pedinte tem que estar muito em alta. Positividade a todo momento. As pessoas que passam de carro, normalmente me notam por pouquíssimos segundo, ou as vezes até menos que isso. Portanto, passar uma boa energia sempre faz a diferença para se ter sucesso. Se eu estiver passando uma imagem de desânimo, minhas chances de êxito se reduzem muito. O motorista pode sentir isso. Foram incontáveis as vezes de que pessoas que pararam para mim me confessarem nunca ter dado carona antes na vida. Eu fui a primeira. Sempre pergunto o porquê disso e a resposta sempre é a mesma, mudando as vezes a forma de se colocar: “Tu me passaste confiança”.
Eu tenho meus estágios para tentar carona. Geralmente, a primeira hora é fácil de se manter a boa energia. Meu sorriso vem da alma. Faço gestos de corações com as mãos. No mínimo tiro um sorriso ou uma buzinada dos motoristas. E a interação, mesmo de que não para, conta muito para se manter a boa energia. Em minha viagem, em 80% dos casos consigo a carona já nesse estágio. Espero poucos minutos e alguém para. Mas nem sempre é perfeito assim. Passado esse estágio, sem êxito, apelo para a música. Coloco meus fones de ouvido, uma música que gosto bastante e procuro entrar em um estado meditativo e danço. Sim, danço enquanto estou com meu dedo levantado. Esse estágio geralmente funciona muito bem, caso o primeiro não dê certo. As pessoas ficam muito curiosas com o fato de uma pessoa que está pedindo carona estar dançando e sorrindo. Mesmo assim, as vezes também não dá certo. Uma hora canso de escutar música e dançar e deixo meus fones de lado. Tento mais um pouco sem a dança, mas já estou mais cansado. Meu sorriso passa a já não ser o mais sincero de todos. E as pessoas sentem, e a carona fica mais difícil ainda. Nesse momento eu mais apelo para a sorte mesmo. De passar a pessoa certa por mim. Por fim, caso tudo isso dê errado, passadas já algumas horas, vou para o estágio final, o apelativo: Faço um gesto de suplica com as mãos. Aquele quando estamos implorando algo. Ele é sincero. Se cheguei nesse ponto, é porque eu realmente quero ou preciso sair de lá o quanto antes. E daí em diante, é contar com a sorte. Uma hora da certo. Sempre da.
Em toda minha jornada, nesses quase 3 anos, conto nos dedos de uma mão as vezes de que não consegui uma carona e precisei dormir onde estava. Tenho total consciência que o fato de ser branco e com sorriso no lugar me ajuda muito (feliz ou infelizmente). Mas independente de quem estiver nessa “lida”, a energia e as formas de interagir com os carros passantes sempre ajuda no bom resultado. E nada melhor do que entender e conseguir estender isso para o restante de nossa vida…
Medos brasileiros
Após sair de Catingueira, peguei uma carona muito interessante. Difícil de se achar em meio ao sertão nordestino. Um homem com doutorado em direito e de extrema polidez. Como eu, adorava filosofar. Tão boa foi nossa conversa sobre a vida que ele mudou sua rota para me deixar na cidade em que eu buscava conhecer. Isso acontece de vez em quando. Coremas o nome dela. Detentora do maior açude do estado da Paraíba. Por lá, passei o dia descansando em uma rede e dormi em frente a esse grande espelho d’água. Um final de tarde deslumbrante com um show à parte da revoada de diversas aves que habitam essa região. Só achei o povo meio desconfiado demais. Mas depois de umas conversas entendi o porquê. Na semana anterior, um jovem havia sido assassinado por uma dívida com o tráfico. Estavam todos ainda meio assustados com o ocorrido. E um andarilho com uma mochila enorme aparecendo sem mais nem menos não passa muita confiança em um contexto como esse. Situações que infelizmente passo de vez em quando.
E o problema sempre está no tráfico. Drogas. Para mim, o maior problema do Brasil por tudo que envolve esse assunto. Hoje, infelizmente, é difícil não achar qualquer pequeno aglomerado de pessoas que não seja controlado por alguma grande facção. E as consequências disso trazem um grande medo e desconfiança dos, até então, pacatos moradores do local, que veem seus jovens sendo coagidos pela máquina do tráfico, seja como usuários, seja como operantes. Triste realidade brasileira.
Quase Jurassic Park
Saindo de Coremas eu já havia decidido meu próximo destino. Queria conhecer uma das maiores cidades paraibanas, que possuía registros únicos de passagem de dinossauros há milhões de anos atrás. Sousa o nome dela. Pegadas fossilizadas que podem ser perfeitamente vistas em, hoje, grandes pedras.
Por lá fui acolhido por duas famílias diferentes que marcaram e muito minha passagem por esse estado. Consegui ficar em um apartamento (vazio) todo para mim por uns dias. Foi bom para dar uma parada e descansar. A triste notícia foi ver que o local onde essas famosas pegadas poderiam ser vistas estava fechado, sem prazo para reabrir. Tudo isso por causa de uma pequena ponte de madeira que estava danificada. Algo que acho que até eu conseguiria ajustar em uma tarde. Mas pelo menos algumas dessas grandes pedras estavam expostas em um pequeno museu. Uma sensação muito doida, ver aquelas pegadas gigantes bem na minha frente. Coisa de Jurassic Park.
Vieirópolis
Minha última parada no estado da Paraíba foi na muito pequena cidade de Vieirópolis. Ainda em Sousa, alguns amigos que fiz me falaram das belezas de uma serra que havia por lá. Muito parecido com o que eu havia visto em Catingueira. Então, ainda cedo, após algumas caronas, consegui chegar lá. Como meu tempo estava tranquilo, já consegui me organizar para subir a serra no mesmo dia. Almocei em um restaurante comunitário de R$1,00. Era uma certa novidade na cidade. A poucas semanas o governo do estado havia instalado essa operação como um teste para poder introduzir em outros municípios também. Almoço bom e balanceado por 1,00 não se acha em qualquer lugar. A impressão que eu tinha era de que toda cidade estava naquela fila. Como a quantidade era limitada, boa parte não conseguia pegar o seu. Mas ficavam tranquilos. Acho que mais iam para lá para fazer a social do dia. Legal foi ver os moradores fazendo questão de que eu passasse na frente para conseguir pegar a minha. Eu amo esse povo. Mas agradeci e permaneci em meu lugar. E deu certo. Consegui minha marmita.
Após comer e dar uma relaxada em uma sombra, conversando com alguns “matutos”, passei em um mercado para comprar alguma comida para levar para serra, me carreguei de água e fui iniciar a subida. Um morador que morava muito próximo a base desse morro me permitiu deixar algumas coisas em sua casa e buscar no dia seguinte. Para eu não ir com muito peso nas costas. Então, pelo meio da tarde, subi a Serra Branca.
FOTO – Fila do almoço comunitário em Vieiropolis
Voltando as alturas
A caminhada foi tranquila, sem grandes problemas. Porém, quando cheguei ao topo, avistei um grande grupo de bois. Eles me olhavam com muita desconfiança. Principalmente o touro. Mas nada que eu já não havia passado. Dei uma “aboiada” e eles saíram do caminho. Consegui montar minha barraca em uma espécie de gruta que havia por lá. Perfeito. O final da tarde foi lindo, como sempre é quando se dorme em locais como esse. Mas eu sentia cada vez mais que as coisas não estavam mais como antes. Em outros momentos, situações como essa me deixavam em uma alta empolgação e sensação de autonomia e liberdade. Agora já estava parecendo cada vez mais comum. Meu deslumbre se apagava lentamente. Até mesmo as diárias perguntas de moradores como: “Tá vindo de onde?”, “E tua família?”, já me deixavam meio impaciente. Que saco, responder isso de novo, pensava eu. Vieirópolis me fez entender o que eu já estava entendendo nas últimas semanas. Que esse meu estilo de viagem estava próximo do fim.
A leveza e deslumbre sobre as coisas estavam sumindo. A sensação que eu tinha era de que eu fazia tudo no automático. E minha necessidade por estar perto de outras pessoas aumentava cada vez mais. Era a solidão, que sempre esteve comigo, mas que antes era abafada pelo colorido de todos aprendizados e novidades que meu dia a dia me dava. Ela começou a ganhar força. Cada vez mais a ideia de voltar para casa me deixava confortável. E eu faria isso em uma 2 meses. Calma Felipe, tudo vai se ajeitar. Refletindo sobre isso, deitei-me em uma ainda morna pedra para observar as estrelas antes de dormir. E claro, caçar algumas estrelas cadentes. Olhando para todo aquele passado e tentando entender qual seria o meu futuro.
Mas enquanto processo tudo isso, na próxima semana me adentro novamente no sertão do Ceará. Até lá!