DIÁRIO DE MOCHILA – Aventuras e caronas inusitadas pelo Ceará e Piaui

Olá! Na última semana falei de minhas paradas pelo sertão pernambucano, ainda em abril desse ano. Nessa edição, entro no período em que entrei em terras cearenses e piauienses. Boa leitura!

FOTO - Desbravando o Parque Nacional da Serra da Capivara
12 de novembro de 2022

Cariri

 

Sertão do Cariri Cearense. Minha primeira passagem pelo estado do Ceará. Região essa com, talvez, a maior devoção a religião católica no Brasil. Abrange alguns municípios, com destaque para o território do CRAJUBAR, englobado pelas cidades de Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha. A segunda maior concentração populacional do sertão nordestino. Terra de Padre Cícero. Um santo, uma lenda por lá, que não só habitou como também foi responsável pela grande expansão do Cariri. Principalmente em Juazeiro do Norte. De um mero padre do, até então, pequeno povoado, virou um milagreiro e pai dos pobres. Naquele final do século XIX e início de século XX, época a qual o sertão era muito castigado pela forte seca e miséria, arrastou milhares de romeiros até a nova “Terra Santa”. Tamanho era seu prestígio e identificação com povo que entrou para o meio político. Fundou o município de Juazeiro do Norte e chegou a ser vice governador do estado. Assim como outra grande personalidade histórica do sertão, Lampião, a história de Padre Cícero tem várias versões, com lados que o veneram e outros que o questionam. Enfim, uma região de muita história.

Pipe, Doda e Gabi em Barbalha

 

E além das histórias, uma beleza natural ímpar. Rodeado pela Chapada do Araripe, o Cariri possui diversos rios, cachoeiras e uma também história indígena e paleontológica muito forte. Pela região do Crato, fiquei 15 dias. A mais antiga das cidades. Fiquei na casa de um até então desconhecido, mas que hoje virou um dos grandes amigos que a viagem me deu. “Doda”, como é conhecido por lá, mora e trabalha no mesmo lugar. Um bar no pé da Serra do Araripe. Ele e sua mãe me acolheram como um irmão/filho. Tentava retribuir esse acolhimento ajudando no dia a dia do estabelecimento. Ajudando a lavar louça, fazendo caipirinhas, na organização do estoque, etc.

 

Felicidade e autoconhecimento

Assim como já havia sido em Triunfo, essa experiência de trabalhar em troca de teto e comida foi sensacional para mim. Apesar de Doda nunca ter me exigido isso (literalmente abrindo um parênteses sobre isso, essa relação mágica onde pessoas te acolhem sem esperar absolutamente nada em troca, talvez seja uma das principais “gasolinas” de minha jornada. A mais pura e real das relações dos humanos. Por isso eu sempre fui cada vez mais me afastando das relações monetárias, onde as trocas quase sempre são por interesses financeiros. Fecha parênteses) Eu fazia por questão de educação frente ao que eu estava recebendo dele e, também, para testar essa experiência. E, assim como em Triunfo, foi muito positivo. Me fez sentir útil e mais participativo daquele meio.

Pipe em Sobradinho

 

Também me identifiquei muito com o ciclo de amizades de Doda. E, pela primeira vez em minha viagem, tive uma esquisita sensação. Talvez algo que eu não estivesse aceitando ver nos últimos meses mas que, dessa vez, veio com muita força.  De ter vontade de me sentir parte de verdade de algum lugar. Naquele caso, naquele meio em que eu estava situado no Crato. Me dei conta de que eu sempre sou um passante. De que as conversas comigo sempre são relacionadas a minhas aventuras e a filosofias em geral. Essas conversas sempre são muito boas, não estou reclamando. Mas pela primeira vez, observando meus novos amigos conversando entre eles, vi o quanto eu sentia falta daquilo. De poder participar de todas as conversas. Falar sobre casos passados, dar risadas. Enfim, coisas que apenas “velhos amigos” falam. E por fim, acho que por um conjunto desses fatores que vinham a tona em meus sentimentos, o Crato foi o primeiro lugar em que eu realmente cogitei ficar mais tempo. Digo, de talvez passar alguns meses mesmo. Morar um período por lá. Além de tudo que já falei, me apaixonei pela cidade. Nem muito grande, nem muito pequena. Um centro histórico lindo, charmoso e com personalidade. Uma cultura fortíssima, de vários setores. Povo simpático e acolhedor e, pra finalizar, muitas belas paisagens naturais para desbravar. Mas em resumo, essas sensações eram muito novas pra mim. Eu precisava assimilar tudo aquilo com o passar do tempo. Até porque, depois de alguns dias por lá, minhas pernas já começaram a coçar. Era a estrada me chamando. Tudo isso, deixei arquivado. Ia seguir meu caminho e deixar meu instinto entender tudo isso no seu devido tempo…

 

Em direção ao Piauí

Parque Nacional da Serra da Capivara

 

Ao sair do Cariri, comecei a rumar em direção a outro estado que eu ainda não havia posto meu pé: o Piauí. Meu destino eram dois grandes parques nacionais do sertão piauiense (destaque para o Parque Nacional da Serra da Capivara), conhecidos por ter a maior concentração de sítios arqueológicos da América Latina. Parques com uma natureza exuberante e selvagem  e, junto a isso, milhares de pinturas rupestres de nossos ancestrais. E eu queria testemunhar isso bem de perto. Antes de ir para lá, passei pela cidade de Petrolina, no sertão do Vale do São Francisco. Essa sim, a maior concentração populacional do sertão nordestino. Duas grandes cidades divididas pelo Rio São Francisco. De um lado, Petrolina (PE), do outro, Juazeiro (BA). Mas esta não é a mesma Juazeiro do Cariri Cearense. Diga-se de passagem que “Juazeiro” é o nome de uma típica árvore da caatinga. Que gera o fruto Juá. Foi minha segunda passagem por Petrolina. Como a cidade era passagem em minhas rotas de caronas para o Piauí, aproveitei para rever amigos que havia feito por lá.

 

Carona brasileira

De Petrolina, sai rumo a São Raimundo Nonato, já município do Piauí. Foi um dia com duas caronas muito atípicas para mim. A primeira delas foi dada por uma mulher. E essa foi a grande questão. Em mais de 2 anos viajando de carona pelo Brasil até então, uma mulher (sozinha) nunca havia parado para mim. Num mundo onde a televisão e internet nos relatam diariamente tragédias relacionadas ao sexo feminino, isso é totalmente compreensível. E por isso, obviamente, esse caso me chamou muito a atenção. Ao entrar no carro, após dar bom dia e agradecer a carona (o que já era automático para mim), perguntei a ela: “Por que tu parou pra mim?!”. Num tom de felicidade ao mesmo tempo muita curiosidade. Ela começou a rir e me explicou.

Há uns 25 anos atrás (na época, ela com uns 20 anos), quando entrou no mercado como representante comercial, precisava visitar as cidades vizinhas a Petrolina mas não tinha carro. A forma que ela conseguiu se desdobrar foi de carona. Todos os dias, ia para a estrada e levantava seu dedo atrás de alguém que a levasse. Sozinha. Ela e seus produtos. Ainda me reforçou: “E eu era bonitona viu?!”. Eu disse que ainda era, de uma forma sincera não sexual. Porque ela era mesmo, fiquei imaginando mais jovem. E pegando caronas. Ela disse que teve essa rotina por mais de 10 anos, até conseguir comprar seu primeiro carro. Havia acabado de ser mãe e o marido a tinha deixado. Foi a opção que ela achou para sustentar a ela e sua filha. Perguntei ainda se ela chegou a passar por algum tipo de problemas, principalmente com homens. Ela não me mentiu, disse que alguns passavam umas cantadas, mas ela aprendeu a sair dessas situações na elegância. Mas esses eram poucos. A maioria eram pessoas muito boas, sendo que algumas se tornaram grandes amigas dela. Ou seja, por ela já ter sentido na pele o que é ficar na estrada tentando carona, parou para mim. E também por não ter medo. Isso é primordial. Viver algo na prática nos traz a doce realidade. Antes disso, só teoria. E teoria não rompe barreiras de medo. Só a prática faz isso. E depois de rompido, aquilo passa a se tornar mundano pra nós.

FOTO – Primeira carona com uma mulher em mais de 2 anos

 

Carona “gringa”

Deixando essa carona, logo em seguida, peguei outra bem peculiar. Começa pelo fato de ter sido um carro importado. Normalmente, os carros mais simples são os que param para mim. Com pessoas mais simples. Que não tem tanto medo de perder aquilo que não tem. E como se não bastasse, um “gringo” no volante. Esse espanhol que já mora a alguns anos no Brasil, chamado Ruben, me levou até São Raimundo Nonato, onde ele também estava indo a trabalho. Tivemos excelentes conversas. Ele ficou fascinado com meu estilo de vida. Perguntou se eu não tinha medo (uma das perguntas que mais escuto em meu dia a dia). Disse que não. Trocamos contato. Em seus dias de folga, ele queria desbravar um pouco daquela região comigo e do jeito que eu faço. Me ligou num final de tarde de sábado perguntando onde eu estava. Eu havia acabado de montar minha barraca em um pequeno posto de gasolina de um pequeno povoado da região. Ele foi até lá com seu carro de luxo. Os frentistas nada entenderam. Fomos na muito simples casa de uma moça, que eu havia conhecido mais cedo, que disse que eu poderia jantar uma Buchada por lá mais tarde. Essa família sim não entendeu nada. Na doçura e pureza de suas existências. Voltamos ao posto. Emprestei minha rede a ele, que dormiu ao lado de minha barraca. No dia seguinte, caminhamos até uma trilha na região e vimos belas pinturas rupestres. Ele teve que ir embora, mas ficou eternamente grato a mim. Aproveitou tudo como uma criança. Mais uma lição que testemunhei sobre não ter medo. Principalmente, de não ter medo de enfrentarmos nossos medos… o que defino como coragem.

Na próxima edição, falo detalhadamente das semanas que passei pelo sertão do Piauí. Até lá!


Publicado em: Turismo






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