Chegando em Recife
Cheguei em Recife com a cabeça um pouco mais organizada. As caminhadas das últimas semanas, no final, haviam me feito muito bem. De saber que eu estava passando por algum tipo de processo de transformação e que precisava olhar bem para dentro de mim. Sem colocar culpas no externo. Fiquei entre a capital pernambucana e Olinda, cerca de 30 dias. A maior parte do tempo em Recife mesmo. Minha estadia por lá foi na casa de um amigo de um amigo, na Comunidade Brasília Teimosa. Antes mesmo de chegar já gostei. Primeiro por causa do nome do lugar. Sensacional. Denominei os moradores como sendo os “brasileiros teimosos”. Segundo, porque era uma comunidade. Local com pessoas mais simples. Aquele ar interiorano encravado em meio a umas das maiores metrópoles do país. Os recifenses em geral, tem um certo preconceito de lá. Dizem ser muito perigoso. Fiquei algumas semanas transitando pela comunidade e nada de errado me aconteceu. Meu anfitrião virou um grande amigo de vida, assim como conheci outras pessoas maravilhosas. Lá eu me sentia em casa. Diferente de quando estava em bairros mais elitizados, como Boa Viagem. O que provava que eu me tornava cada vez mais simples e gostando de estar em locais assim e com pessoas tais quais. Um visual interessante que se via por lá era o de altos e luxuosos prédio comerciais contrastando com as construções simplórias da comunidade. Um belo e triste retrato do Brasil.
Seguindo minha intuição
Nas semanas que fiquei por Recife, tive um banho de história, visto que a cidade é uma das mais antigas do país. Visitei diversas igrejas, museus, bairros históricos e, principalmente, fiz alguns bons amigos por lá. Mas no fundo, eu queria voltar para o interior. Queria entrar a fundo no sertão nordestino e voltar a estar em contato com aquele povo mágico interiorano. Em minha cabeça, achei que isso poderia me fazer bem, visto o período confuso em que eu passava. Alem do que, o litoral costuma ter visuais muito previsíveis. Já o interior, tende a surpreender muito mais. Minha intuição me dizia para fazer isso. E eu estava aberto a realmente sentir o que me fazia bem e conhecer mais a fundo as minhas verdades. Então, no início de abril, me joguei para a estrada em direção ao sertão pernambucano. E junto com esse novo momento da minha viagem, trouxe uma mudança pequena, mas muito significativa para o meu dia a dia. Resolvi ficar um tempo sem usar Instagram. Isso mesmo, o aplicativo. E por que resolvi fazer isso? Descobri algumas verdades em minha relação com ele. Primeiro, que ele me deixava menos presente. Lógico. Quanto mais ficamos mexendo num aparelho eletrônico em nosso bolso, menos estamos entregues ao momento em que vivemos. Segundo, porque entendi que ele me entregava duas coisas que, na realidade me faziam bem, mas que eu sabia que não vinham do mundo real, e sim, do virtual: autoconfiança e companhia. A autoconfiança vinha de os meus amigos seguidores do Instagram que vibravam e se empolgavam com meus posts diários. Isso, de uma certa forma, me dava confiança para o que eu estava fazendo. Alimentava meu ego. E a companhia era uma consequência dessa troca de interação. Eu não me sentia muito sozinho. Errado? Não existe certo e errado nesse mundo. Porém, eu via que aquilo não era real. Ter isso não me dava a oportunidade de eu realmente entender meus sentimentos e saber o que eu queria de fato. E entendi que, saindo desse app por um tempo, meus sentimentos se tornariam mais reais.
Voltando ao sertão
Logo em meus primeiros dias pelo sertão, quando eu estava no Catimbau para rever meu amigo que havia feito por lá (ainda quando estava com a Isa), Júnior, descobri que haveria um “Pega de Boi no Mato” numa cidade relativamente próxima. O Pega de Boi é um dos tipos de vaquejada dos sertanejos. Só que mais raiz. Foi meu amigo Júnior quem me indicou esse evento. Mas ele me avisou que, a região onde ele aconteceria, não era de pessoas muitos amistosas. Me disse para tomar muito cuidado. Assimilei, peguei minha mochila e, numa sexta feira, fui para a estrada pegar carona para conhecer esse tão cultural evento sertanejo.
O evento ocorria entre sexta e sábado. Cheguei na sexta à noite, nesse povoado da cidade de Floresta, chamado Capoeira de Barro. Do meu jeito: caminhando após conseguir uma carona até um trecho, com minha (nada pequena) mochila. Entendam que esse tipo de evento é bem local, não existe nenhum tipo de turismo envolvido. É composto apenas por vaqueiros do sertão e simpatizantes que estão indo mais pelo forró. Fui sem conhecer ninguém e sem ninguém me conhecer. Povo bruto, desconfiado. Todos com seus facões pendurados e anormal era não ter alguém armado (com arma de fogo mesmo). Nessa região os problemas se resolvem na bala. Nas rádios, antes do evento, os locutores pedem para que não se vá armado, para se ter noção… Um histórico cultural faz com que as coisas por lá ainda sejam assim. Uma herança da pistoleragem entre coronéis no passado junto com a era do cangaço. Entendendo isso, imagina a cena de um galego (eu), chegando com uma mochila gigante, à noite e caminhando nesse povoado encravado “nas brenha” da caatinga. Mas deu tudo certo, o organizador do evento entendeu minha história e deixou eu colocar a barraca em seu quintal durante os dias do evento.
Cerca de 40 bois, cada um com um valor em reais (R$) marcado numa espécie de coleira, ficam confinados durante 3 meses e, quando soltos, correm por liberdade e adentram a caatinga como se não houvesse amanhã. Uma hora depois, os vaqueiros (nesse evento que fui, cerca de 1mil) vão em busca do gado no mato. Tem que pegar no braço mesmo. Cortar a caatinga com seus vários espinhos atrás do bicho e depois trazer de volta para que se receba o prêmio. Lógico que a grande maioria não pega nada. Mas a emoção maior é a de usar a vestes de vaqueiro e fazer parte daquilo. Vi desde crianças de 14 anos até senhores de mais de 90 nessa lida. Fartura em comida e um bom forró pé de serra pela noite. Porém a energia não era das melhores. A desconfiança entre eles era muito grande. Eles mal conversavam entre amigos, quem dirá comigo.
Medo e alívio
O dia que decidi ir embora do Pega de Boi no Mato não foi um bom dia de carona. Fiquei 3h tentando, mas ninguém parou pra mim. Como já estava escurecendo, tive que ir até o povoado mais próximo pra conseguir água, um prato de comida e um lugar pra acampar. Acreditem, já estou acostumado com isso, é coisa fácil de se resolver. Mas nessa região não. Na primeira casa que fui pedir ajuda o dono não se aproximou muito e ficava com a mão no revólver enquanto eu falava. Consegui água, mas ele disse que barraca por perto não podia colocar. Já me assustei, pq isso não era normal mas minhas andanças. Fui para a próxima casa, onde a reação foi muito parecida. Então, sem saber o que fazer, sentei no chão e comecei a pensar. Nisso, escuto uma voz vindo da casa mais próxima. Pensei: “Ufa! Alguém vai me acolher”. Mas não, depois de eu contar tudo que tinha acontecido a esse homem ele basicamente me mandou ir embora do povoado, em outras palavras. Não tava entendo pq aquilo tava acontecendo (alguns dias depois, ao contar o acontecido a um sertanejo, ele me disse que possivelmente eles achavam que eu estava fingindo e era enviado de alguma família rival pra matar alguém), mas entendi que eu precisava sair de lá. Era noite, no meio da caatinga, numa estrada de areia e sem iluminação. Eu, minha mochila e um pouco de água. Foi a vez que mais tive medo do ser humano (fora alguns medos que passei da natureza) até hj em minha viagem. Pensei que a qualquer momento alguém podia vir atrás de mim e me matar. Até que então um. carro aparece da escuridão.
Antônio, com sua Elba 92 e armado. Contei minha história e ele disse: “entra, tu vai dormir na minha casa”. Naquele momento, eu não sabia se ele simplesmente estava passando por aquela estrada ou vindo diretamente atrás de mim. Eu não tinha opção, entrei e confiei nele. Confiar, isso é muito importante. Os minutos seguintes foram tortuosos para mim. Ele está me ajudando ou vai me matar e enterrar em uma vala? A tranquilidade chegou em mim quando chegamos em sua muito simples casa e vi seu filho, uma criança. Pensei: ele não vai me matar, aqui não. Não me matou e me tratou muito bem. Comi fava de mel e porco do mato, que ele havia caçado no dia anterior, e ouvi suas historias. Dentre várias, uma que me marcou. Me disse que em sua infância, com sede, ele e sua família achavam pontos pra cavar e esperar a água minar da terra. A pouca água que vinha era dada para o gado não morrer. E eles? Bebiam sua urina…
Na semana que vem continuo nas minhas descobertas internas e do sertão nordestino. Até lá!