DIÁRIO DE MOCHILA – Em busca de minhas raízes no Ceará (parte 2)

Buenas! Na última semana meu relato foi sobre minha saída de Jeri, indo em busca de um pouco de minhas raízes familiares no litoral cearense. Nessa edição, sigo mais um pouco dessas buscas e início minha grande jornada de retorno ao sul. Boa leitura!

21 de abril de 2023

Sobral e mais raízes familiares

 

Após passar por Camocim, no extremo oeste do litoral do Ceará, onde fui tentar resgatar um pouco de minhas raízes familiares por parte de mãe, segui para Sobral. Essa cidade, considerada a mais quente do estado do Ceara, fica no sertão. Um dos motivos desse calor tão forte. Já não tem aquela brisa que o oceano trás. E para piorar, fica em meio a um grande vale. Ou seja, cercada de serras que impedem que ventos entrem na cidade. E por fim, é uma grande cidade (para os padrões do Ceara), portanto, com muito concreto, aço e asfalto. E essas invenções do homem fazem o calor ser retido com muito mais facilidade. Em resumo, me senti num pedaço do inferno. A parte boa foi que a cidade me pareceu muito simpática. Um centro histórico lindo e muito bem preservado. Cidade original de personalidades como Renato Aragão, Belchior e Ciro Gomes (esse foi para lá pequeno, mas fez toda sua vida por Sobral). E também de minha falecida tia avó, Anísia. Pessoa que nunca tive o privilégio de conhecer pessoalmente, mas que deixou um grande legado. Decidiu levar a vida de freira ainda jovem e seguiu até o dia de sua morte, já perto dos 90 anos. Foi professora e diretora da mais tradicional escola da cidade. Por lá ela é quase uma lenda. Era só falar seu nome que todos abriam um sorriso.

Após alguns contatos consegui uma conversa com um funcionário da escola que me falou de  grandes feitos de me minha tia avó. A escola mantém até hoje intacta sua então sala. Por lá consegui ter acesso a diversas fotos antigas com ela, meu avô e seus irmãos ainda pequenos. Meu avô Renê sempre foi o grande amor de sua vida. Lembro quando eu era pequeno de ele fazer ligações pra sua irmã Anísia, e em meio a conversa chorar  ao telefone. A distância era muito longa. Também tive meus momentos de emoção em Sobral quando tive noção do quanto ela representou sentimental e profissionalmente a diversas pessoas ao longo de sua vida. Inclusive, Anísia foi professora de Renato Aragão (o Didi) e Ciro Gomes. Bons momentos de conexão com minhas raízes.

 

Desconstruindo verdades

 

Um dos pontos interessantes que Sobral me trouxe, agora voltando o foco para mim, foi de, depois de alguns anos, aceitar pagar para dormir em um local. Trata-se de uma cidade grande. Nunca gostei de dormir pelos cantos de cidades assim. Até cheguei a achar um local perto de um lago para colocar minha barraca. Mas estava próximo de moradores de rua viciados em craque e e o calor era algo insuportável. Os viciados não fazem nada de mais, já dormi algumas vezes perto deles. Só incomodam as vezes querendo conversar. E eu gosto de dormir tranquilo. Mas o calor estava complicado de mais. Vendo esse contexto, decidi procurar algum quarto barato para que eu pudesse ter uma noite mais tranquila. Achei um perto da rodoviária por 50,00 a noite. Uma suíte com ventilador. Luxo total para mim. Por lá fiquei as noites que passei em Sobral. Já foi um passo gigantesco para uma grande mudança de vida que se apontava em meu futuro. E já mostrou uma quebra de paradigmas que eu mesmo havia criado para mim.

Depois de muito tempo eu aceitei pagar para dormir em um lugar. E isso deixou minha estada por lá muito mais tranquila. Pude aproveitar melhor as buscas de minha tia e a cidade em si. Uma grande verdade que eu havia construído ao longo de minha viagem e estava começando a quebrar.

 

Próxima parada: sul

 

Sobral foi a última cidade que eu oficialmente passei para conhecer em minha jornada. Isso porque, depois que sai de lá, comecei uma grande epopeia para chegar até o Rio Grande do Sul, minha casa. Decidi que faria isso na carona. Ou seja, eu teria que cortar simplesmente quase que a totalidade de um dos maiores países do mundo, pegando carona. Porém, eu tenho o contato de pessoas que vivem nessas estradas diariamente: caminhoneiros. A ideia era eu conseguir algum deles que morasse pelo sul e estivesse fazendo um frete pelo nordeste e embarcar junto. Inicialmente eu tinha o contato de um caminhoneiro gaúcho que fazia a linha entre Sobral e Porto Alegre. Mais do que perfeito. Porém, por não ter tido demanda por fretes ele não faria essa viagem tão cedo. Tive que mudar minha estratégia. Mas frustrado. Eu já tinha uma carona que me buscaria direto onde eu estava e me deixaria na porta de casa. Em 4 ou 5 dias chegaríamos lá. E ela falhou.

Enfim, chorar não adiantava. Intensifiquei minhas buscas por uma carona mais certeira até conseguir fechar com o caminhoneiro Anderson. Anderson mora no extremo sul de Santa Catarina, a poucos quilômetros de minha cidade. Porém, sua viagem seria até João Pessoa, na Paraíba. E eu estava no extremo oeste do Ceara. Uma distância bem considerável para encontrar ele. Anderson me disse que dentro de uns 5 dias estaria por João Pessoa e que, no caminho para lá, passaria para fazer uma descarga em Pesqueira, cidade do agreste Pernambucano e que, muito casualmente, eu tinha uma grande amiga. Seriam quase mil quilômetros para chegar lá, mas eu não tinha opção melhor. Assim, sai de Sobral e iniciei essa grande jornada.

 

Direto para a Ambulância? 

FOTO – Pipe pegando carona inusitada com ambulância

 

Saindo de Sobral, eu sabia que obrigatoriamente teria que passar por Fortaleza para conseguir algum caminhão que estivesse descendo em direção ao Pernambuco. E em paralelo, iniciei outros contatos para tentar já garantir esse trecho também. Rapidinho eu consegui. No dia seguinte, muito cedo, um caminhão sairia de Fortaleza em direção ao sertão do Pernambuco. Me deixaria já muito próximo de Pesqueira. Não queria perder essa oportunidade por nada, então sai muito cedo de Sobral para conseguir vencer os quase 300 quilômetros até a capital cearense ainda naquele dia, pegando carona. Depois de caminhar alguns quilômetros em direção a saída da cidade, em um sol que parecia derreter o cérebro, consegui essa carona. E de um jeito inédito que desde o início da minha jornada eu sempre quis ter a experiência. Com uma Ambulância. E que ia direto para Fortaleza. Um presente que o universo me dava por saber que minha jornada estava chegando ao fim. Obviamente, estava sem enfermos. O motorista e sua esposa estavam indo a fortaleza buscar essa pessoa e aceitaram parar para mim. Inicialmente, sentei numa pequena cadeira que havia na parte de trás, e fui conversando com o casal que estava na frente. Até o motorista me disse para ficar a vontade e deitar na maca. Eu estava esperando por esse momento. Ele alegou que eu devia estar muito cansado e merecia esse descanso. Além de deitar na maca, ele acelerou o ar condicionado e me deu um cobertor. Dormi que nem um anjo até chegar em Fortaleza, depois de algumas horas de viagem. E nem precisei de morfina.

 

Pé na estrada

 

Dormi uma única noite na capital cearense, na casa de minha amiga que eu havia ficado quando passei por lá. Muito cedo no dia seguinte, peguei um ônibus até a sede da FedEx, empresa que o caminhoneiro que me daria carona trabalha. Saiu tudo nos conformes. Antes das 7h estávamos entrando na maior BR do Brasil, a 116. Rumo ao sertão pernambucano. Seria um dia inteiro de viagem. Cerca de 500km. Que sendo feitos em um caminhão carregado e com trechos deploráveis da rodovia, são feitos de forma lenta. Ser caminhoneiro é um exercício de paciência. Cristiano era o nome do motorista. Ainda pela manhã, passamos pelo trecho considerado o pior de toda a BR-116. Não são buracos, são crateras lunares. Até caminhonetes 4×4 passavam lentamente. Quem dirá o caminhão. E nesse contexto testemunhei um retrato da desordem que é o Brasil. Nessa tão destruída estrada, em trechos completamente isolados, homens, mulheres e até crianças, usando uma pá, tiram areia do mato e colocam nos buracos da rodovia. Em um sol que castiga demais. Quando vi de primeiro momento pensei que eram alguma espécie de funcionários do governo que faziam algum tipo de revitalização. Mas não. São moradores miseráveis do sertão cearense que fazem isso em troca de esmola. Ao passar com o caminhão por eles que fui entender. Quando alguma carreta se aproxima, sempre muito lentamente, eles levantam o braço num gesto de quem pede algum trocado. Aquele sinal clássico que simboliza dinheiro esfregando um dedo no outro. Pedindo dinheiro, mas mostrando de alguma forma que estavam ajudando. Aquilo me corroeu por dentro. Principalmente por ver crianças junto. E não era algo tão raro. Como esse trecho crítico tinham vários quilômetros, essa situação se repetia diversas vezes. Um dos vários retratos tristes que o Brasil exibe diariamente por aí. No início da noite chegamos no Pernambuco. Cristino iria seguir um pouco mais adiante, então me deixou em Salgueiro. Cidade que já estava em outra BR que me levaria até Pesqueira, mais em direção ao litoral. Dormi aquela noite em um posto de gasolina e no dia seguinte peguei algumas caronas, fazendo cerca de 300 quilômetros, até chegar em Pesqueira no final da tarde. Fui muito bem recebido por minha amiga Luana, a qual eu já havia conhecido naquele mesmo ano. Agora, me restava aguardar alguns poucos dias até que o caminhoneiro Anderson passasse por lá e eu embarcasse com ele rumo ao sul.

Na próxima semana falo de como foi essa grande jornada até chegar em casa e de todas as aflições e aventuras que passei. Até lá!


Publicado em: Geral






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