DIÁRIO DE MOCHILA – Entre caronas, poesia e cantorias nordestinas

Buenas! Na última semana relatei de meu retorno ao sertão nordestino. Nessa edição, conto de minhas caronas e das minhas mais poéticas experiências até hoje em minha jornada. Boa leitura!

FOTO - cidade de São Jose do Egito (e) - Cantoria de Repente (d)
17 de dezembro de 2022

Ao encontro da poesia

Após ficar na casa de Seu Pedrosa, no interior de Monteiro (na Paraíba), minha vontade de conhecer de perto uma Cantoria – forma como eles costumam chamar apresentações de Repente – cresceu muito. A região onde eu estava pulsava poesia e não queria perder essa oportunidade. O final de semana se aproximava e eu imaginava que seria mais fácil de achar algo acontecendo. Então, resolvi me deslocar para a cidade que é considerada a capital nordestina da poesia, chamada São José do Egito. Essa pequena cidade fica dentro do território pernambucano, muito próxima da divisa com a Paraíba, onde eu estava nos últimos tempos.

Após algumas caminhadas pelas belas paisagens de pedras do interior de Monteiro, consegui uma carona que me deixaria na estrada de asfalto, para então eu rumar até São José. Comentei com o casal que me colocou em seu carro que eu estava ambicionando encontrar alguma cantoria naquele final de semana. Ainda era manhã de sexta feira. Eles me deram o nome de um homem que, segundo eles, sabia de tudo que acontecia no mundo da poesia local. Apenas um nome: Felizardo. Ao me deixarem na estrada, num pequeno povoado, parei para almoçar. Conversando com a dona do restaurante, magicamente consegui o telefone do Felizardo. Ela era uma antiga amiga dele. Tentei ligar e ele não atendeu. Mandei uma mensagem me apresentando e perguntando se alguma cidade da região teria alguma cantoria nos próximos dias. Fiquei mais uma hora esperando ele responder e nada. Então, segui meu instinto e comecei a pegar caronas até São José do Egito. Eu sabia que esse era o principal município do Repente, então, resolvi apostar nessa opção.

 

Atravessando fronteiras

Eu estava a uns 150km de lá. Para mim, muito perto. Fácil de chegar até o final da tarde. Peguei várias caronas que me deixavam sempre no próximo povoado ou na próxima cidade. Carona é uma loteria. As vezes, se tem a sorte de conseguir alguém que está indo direto para o teu destino. Em outras vezes, vem tudo bem parcelado, como costumo dizer. E esse dia foi assim. Cada carona me levava uns, 10, 15km para frente. Numa dessas caronas, já mais próximo de São José, peguei uma carona icônica. Um muito velho e pequeno caminhão que, em sua cabine, levava umas 7 pessoas naquele espaço onde, teoricamente, entram 2. Tinha desde bebê de colo até um senhor que parecia ser centenário. Todos bem paradinhos e quietinhos. Eu nunca esqueço daquela cena. Eu deveria ter tirado uma foto. Parecia cena de filme onde os mexicanos tentam atravessar ilegalmente a fronteira dos EUA. A diferença é que eu atravessava a divisa da Paraíba com o Pernambuco.

O motorista, com uma camisa aberta, chapéu e um palito de dente na boca, me disse para subir na caçamba. Não tinha mais espaço nem para o ar naquela cabine. Quem dirá para mim e minha mochila. A carroceria, onde subi, tinha diversas tábuas podres ou quebradas em seu chão. Alguns buracos faziam tu ter uma vista privilegiada do asfalto enquanto o carro andava. Relativamente perigoso. E junto comigo lá em cima, um senhor idoso e dois cachorros. Fora algumas outras tralhas que imagino serem dos passageiros da frente. Foi uma viagem engraçada. Eles entrariam em um povoado no meio do sertão e, para isso, sairiam da estrada principal. Ao parar o caminhão para eu descer, o motorista me chamou em sua janela. Todos os seres da cabine olhavam para mim num olhar silencioso e humilde. Ele retirou uma nota de 5,00 rasgada e me deu. “Pra te ajudar do teu caminho. Deus te proteja.”. Gente muito simples e de coração gigantesco.

 

 

Carona poética

A parte ruim foi que esse ponto onde ele me deixou não era nada favorável para uma próxima carona. Não era próxima de nenhum meio urbano, nem havia nem um redutor de velocidade. Os carros passavam muito rápido por mim e nem faziam menção de parar. Em locais mais isolados, principalmente no sertão, os motoristas tem muito receio de parar para dar carona. Pensam que eu posso estar fugindo ou querendo rouba-los. Olhando no mapa do celular, que estava sem internet, estimei que eu estava a uns 10km do próximo povoado, onde teria mais facilidade de conseguir uma nova carona. A tarde já se encaminhava para seu fim e meu tempo estava curto. Eu teria de chegar até São José, arrumar um local para colocar minha barraca e ir atrás de alguma Cantoria. E como eu estava sem sinal, não sabia se Felizardo já havia me respondido ou não. Então, segui pela estrada caminhando pelo acostamento, em direção ao povoado.

Eis que então, uma moto, de forma totalmente voluntária, encosta para mim. Num primeiro momento até achei que poderia ser assalto. Essa rodovia não tinha boa fama. Mas não era. Estava me oferecendo carona. E o melhor, indo exatamente para onde eu queria, São José do Egito. Fomos conversando no caminho (ambos sem capacete. Essa não é uma cultura muito forte do sertão), quando ele me disse que era um poeta da região e que também conhecia Felizardo. Ele não estava por dentro das Cantorias que aconteceriam, mas reforçou que Felizardo era o cara que sabia de tudo. Marquinhos da Serrinha, como é conhecido, me deixou em São José ainda de dia. Depois de uns dias, me falaram que ele até já escreveu uma das músicas gravadas pelo jovem e famoso cantor João Gomes.

 

Fui felizardo

Em São José do Egito, consegui sinal. Nada de resposta do Felizardo. Resolvi ir conversando com as pessoas na rua e nos bares a fim de achar alguma apresentação de Repente. Mas nada. Meu dia havia sido muito cansativo. Acordei cedo, caminhei no sol, peguei várias caronas. Estava cansado. Desisti de tentar achar cantoria naquele dia. Iria dormir e, no dia seguinte, ver se achava algo. Fui até um posto de gasolina, onde falei com o frentista que disse que eu poderia armar minha barraca em um canto por lá. Já estava escurecendo quando comecei a montá-la. Então, meu celular me da aviso de mensagem recebida. Era o Felizardo. Pediu desculpas pela demora, pois estava na estrada a tarde inteira. E me falou que, logo mais, iniciaria uma Cantoria em um povoado de São José do Egito com os principais repentistas da região. Isso me deu uma nova injeção de ânimo. Ele me deu as coordenadas e peguei uma carona rapidamente até lá, antes que escurecesse.

Quando cheguei na casa onde o evento aconteceria, já era noite. Felizardo e outros poetas estavam por lá. Me receberam super bem e queriam entender exatamente quem eu era e o que eu estava fazendo ali. Após eu explicar e ser bombardeado de perguntas,  tomei um banho e jantei com eles. No meio dos Repentistas, esse evento é conhecido como “Cantoria Pé de Parede”. Evento fechado apenas para os poetas e familiares, basicamente. Coisa para eles se divertirem. E estava acontecendo na casa de uma senhora, apaixonada por Repente, que volta e meia cedia seu espaço para isso, vendendo também comidas e bebidas. Jeane o nome dela. Depois eu explico melhor como ela teve uma participação memorável em minha jornada.

 

Cantorias

Pipe e Jeane

Durante toda noite de sexta-feira, vi diversas apresentações dos poetas. Principalmente Cantorias de Repente. Repente é uma muito tradicional cultura nordestina. E que passou a ser a minha preferida do Brasil. Mais propriamente do sertão, como a maior parte das culturas dessa região do Brasil. Trata-se de poesia improvisada. Uma dupla de repentistas, que revezam durante a noite entre vários poetas, enquanto tocam suas violas, improvisam rimas de acordo com o tema dado pelo organizador. Esse tema é uma frase, a qual o repentista deve terminar sua canção com ela. Normalmente são temas relativos ao regionalismo sertanejo, ou questões relacionadas a vida em geral. Sempre recados que fazem pensar e com alguma moral por trás. Mas a parte que achei mais divertida foi a dos desafios. Nesse caso, um poeta desafia o outro, improvisando, e procurando “desmoralizar” o oponente. Mas tudo na mais pura brincadeira. Normalmente eles são amigos pessoais e conhecem os “podres” uns dos outros. Ai que a graça vem. Lindo também é ver a empolgação dos poetas ouvintes a cada improviso bem feito. Parece comemoração de gol de final de campeonato. Presenciei a apresentação de artistas desde os 13 até mais de 80 anos.

No final da apresentação, quando ja passava da meia noite, a Jeane, dona da casa, veio me perguntar onde eu dormiria. Eu estava com minha mochila dentro de sua residência e ela deve ter ficado curiosa a respeito disso. Quando falei com o Felizardo, antes de ir até a Cantoria, comentei que eu precisava de algum lugar para colocar minha barraca. Ele me disse: “Vem que tu se ajeita por aqui”. Fiquei tranquilo. Mas Felizardo saiu mais cedo, depois de beber um pouco mais do que devia. E quando Jeane reparou que eu estava solto por ali, veio me fazer essa pergunta. Como eu estava em um povoado, sabia que podia colocar minha barraca em algum canto. Mas ela, no início meio desconfiada (mora apenas ela e seus dois filhos adolescentes), me disse para ficar por lá aquela noite. Mas que depois viraram três. Coloquei minha barraca em sua varanda e fiquei por lá até segunda-feira. Comia com eles e tirei os dias para descansar, após as últimas semanas de muita caminhada e caronas. Até hoje Jeane me manda absolutamente toda semana uma mensagem perguntando como estou. Ela diz que sou um terceiro filho que a vida lhe deu. E considero ela uma das poucas mães que a estrada me deu.

Na próxima semana, conta de minha sequência pelo sertão pernambucano, dormindo em cima de serras e tendo novas descobertas internas. Até lá!


Publicado em: Turismo






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