Equilibrando
Minha rotina estava melhor do nunca. Apesar de o hostel permanecer quase sempre lotado, consegui atingir um lindo equilíbrio na operação, que veio a resultar num equilíbrio pessoal espiritual. Passei a aproveitar tudo com muito mais cuidado, degustando. Principalmente as conexões intermináveis com os hóspedes israelenses que entravam e saiam do hostel, mas sempre mantinham a mesma energia que fechava por completo com minha frequência. Mas com o tempo, comecei a sentir que meu ciclo por Jericoacoara já estava chegando ao fim.
Foram alguns fatores que começaram a pesar e refletir sobre um futuro próximo. Antes de tudo, meus pais. Antes de embarcar nesse desafio que foi e estava sendo Jericoacoara, eu havia estado algumas semanas com eles no sul, quando senti que minha presença por lá por um tempo a mais poderia fazer um sentido maior, não só para eles, como para mim também. Eu saí de casa (em Torres-RS) para ir morar em Porto Alegre com 16 anos. E depois disso, até o momento em que escrevo, minhas passagens por lá se baseavam em esporádicos finais de semana. Logo, ficar um tempo mais perto deles faria sentido. Além disso, já se passavam mais de 3 anos na estrada. E de uma forma muito intensa. Quem me acompanhou por aqui mais de perto sabe disso. Eu sentia que uma parada para assimilar tudo que eu havia feito e quem eu havia me tornado era necessária. Outro fator era para me permitir experimentar uma vida estática mais “convencional”. E eu precisava testar isso no sul, em minha terra.
Nesse aspecto, voltando principalmente ao fator dos meus pais. Numa necessidade maior de eu querer (ou realmente precisar) estar mais perto deles, eu precisava analisar possibilidades de onde e como exatamente eu poderia me encaixar em uma nova vida no Rio Grande do Sul. E por fim, apesar de estar feliz, a cada dia que passava eu sentia que entrava em um automático maior. Nada que não seja muito comum entre os seres humanos e nossa natureza, mas que, para mim, significava analisar outras possibilidades. Enquanto a maioria das pessoas tem dificuldade de sair da zona de conforto e ir em direção ao novo, eu me vejo cada vez mais na situação oposta. Ficar na zona de conforto não me motiva. Na verdade, nunca motivou. Minha vida sempre foi uma eterna busca por novos desafios. Mas depois que fiz meu grande movimento de vida e saí pelo mundo, isso foi potencializado. E não falo isso de uma forma prepotente ou arrogante. Primeiro, eu sou assim. Isso faz parte de minha essência. Segundo, em vários aspectos isso não é nada legal. Muitas vezes eu tenho, de verdade, muita vontade de conseguir parar em algum lugar e viver um estilo de vida mais comum. Conseguir ter ciclos mais longos, aceitar uma zona de conforto e conseguir ser minimante feliz assim. Mas não. Minha natureza vai de encontro ao oposto disso.
Não sei se isso vai perdurar enquanto eu estiver respirando por esse planeta ou é um ímpeto que tende a baixar com meu envelhecimento. Sei que hoje, sinto isso mais latente que nunca. E esse ponto foi essencial para minha decisão de deixar Jeri. O que eu tinha para aprender lá, já havia aprendido. Queria algo novo. Não só queria, precisava disso. E ficar por lá deixou de fazer total sentido quando me dei conta disso. E tudo isso que falei, sempre com uma fortíssima pitada de intuição. Algo que a estrada me ensinou a sempre respeitar e pretendo levar para o resto da vida. Ouvir minha intuição.
Secando lágrimas
Após eu internalizar essa decisão em mim, as coisas já começaram a mudar aos poucos. Por um lado, aqueles pequenos problemas rotineiros relacionados à operação do hostel já deixaram de me abalar, afinal, eu sabia que em breve iria embora. Por outro lado, tudo aquilo que mais foi e ainda estava sendo responsável pela linda felicidade que se apoderou de mim em Jeri, passou a ser mais importante e valorizado que antes. Justamente porque eu sabia que iria embora. E isso me deu um repentino novo e renovado ânimo. Como se eu estivesse recém chegando em Jeri novamente. Um deslumbre gerado pelo sentimento de despedida. O ser humano é um bicho complicado. Basta entendermos que não teremos mais algo que passamos a aproveitar esse algo com muito mais intensidade. Vai entender. E foi exatamente o que aconteceu comigo nas duas últimas semanas que estive em Jericoacoara. Duas semanas em que eu me despedida todo dia de tudo, em meu próprio silêncio. Meu sagrado amanhecer com os passarinhos e meu mate; os cafés da manhã com os voluntários; as recepções dos novos israelenses que chegavam; as conversas e conexões criadas com eles; os mágicos finais de tarde no Morro do Serrote; as caminhadas noturnas pela vila, comendo um açaí com creme de cupuaçu (que eu simplesmente amo). Tudo passou a ser sentido por mim com muito mais reflexões e intensidade. E sou muito fácil de me derreter. Chorar passou a incrementar minha rotina. Geralmente eu o fazia quando estava sozinho para não chamar a atenção nem preocupar ninguém. Até porque não era um choro de tristeza. Nem de felicidade, dessa vez. Era uma mescla de bons e ruins sentimentos. O choro da saudade antecipada. Da despedida parcelada que acontece lentamente e que vai nos fazendo sentir tudo mais aflorado. E, no fundo, um choro por mim mesmo. Por ter vivido tudo que Jeri me entregou e, mesmo assim, não conseguir seguir por lá. Um choro por essa busca incessante pelo novo, pelo desafio, que não me permite me acomodar. Chorar faz bem. É um sentimento que está sendo colocado pra fora. É chorando que temos lágrimas para secar e seguir adiante.
Fim de ciclo
Não sei se porque eu já estava nesse clima de despedida, ou porque realmente aconteceu, mas o último grupo de israelenses, nos meus derradeiros dias em Jericoacoara, foi o melhor de todos. O mais amável, tranquilo, unido e conectado comigo. Foi um presente de despedida. Porém, tornou essa despedida muito mais difícil do que já estava sendo. Dois dias antes de eu ir para Fortaleza, onde pegaria um avião rumo a Porto Alegre, cerca de uma 15 israelenses, desse último grupo que relatei, estavam partindo também, após terem ficado os comuns de 7 a 10 dias no hostel. Eles iriam embora perto da meia noite, quando alguns carros (transfer) iriam busca-los. Como normalmente eu deitava muito cedo, me despedi de um a um ao longo do dia, mas sem muito alvoroço para não me emocionar. Porém, uma menina havia deixado uma mochila em meu quarto e precisava pegar para ir embora com o grupo. Ela bateu na porta alguma vezes até me acordar. Meio sonolento, abri a porta para ela que me pediu desculpas e pegou sua bagagem. Mas ao fazer isso, foi inevitável todos os hóspedes me verem. Estavam todos juntos, arrumados e a espera dos carros que os levariam embora. Todos numa energia simplesmente linda. Alguns que ficariam se despedindo dos que partiam. Eles se conheceram lá no hostel e criaram uma conexão surreal entre si e também comigo. Então, ao me ver, eles me chamaram. Eu já sabia o que iria acontecer. Fui no banheiro, joguei uma água na cara, respirei fundo e fui até eles. Ao chegar, todos me abraçaram juntos. Ali meus olhos já começaram a brilhar. Depois, alguns deles fizeram declarações abertas e lindas para mim. Uma dela, a Roni, falou (mais ou menos isso): “Felipe, se todos nós estamos nos amando assim, é por tua causa. Tu é o grande culpado de nos deixar meio abobados assim. Tu consegue deixar esse lugar numa atmosfera mágica e todos nós conseguimos ver e saber que isso acontece por tua causa. Muito obrigado por isso, nós todos te amamos!”. Meus olhos estavam encharcados mas eu segurava o máximo que dava. Falei as minhas palavras e coloquei meus sentimentos pra fora. E apesar de eu estar de frente com esse grupo, essa mensagem foi para todos os israelenses que haviam passado por lá nos últimos meses. Por toda essa descontrolada paixão que tive com essa nação. Os carros deles chegaram bem na hora. Sentei em frente ao meu quarto, enquanto eu os via partir. Era com se eu estivesse vendo tudo aquilo que mais me deixou feliz nos últimos meses indo embora, bem na minha frente. Eles representaram não só apenas todos os israelenses, mas os meus finais de tarde em meio a natureza, minhas danças no Café Jeri, meus voluntários, as conversas mais profundas que tive com vários tipos de pessoas. Minha felicidade. Minha tão intensa e especial felicidade que tive durantes 3 meses em Jericoacoara. Entrei no meu quarto e chorei. Por vários e vários minutos. Como uma criança sozinha e desolada. Coisas da vida. Meu ciclo em Jeri havia acabado. E um novo, meio muito conhecido e meio nada conhecido me esperava. Voltar à minha cidade perto de minha família e me escutar. Olhar para trás e entender o que exatamente havia acontecido em Jericoacoara para eu ter esses episódios de felicidade tão fortes com nunca havia tido. Entender o que exatamente o Felipe havia feito nesses últimos 3 anos, andando sem rumo pelas estradas do Braisl. E assim, entendendo um pouco mais de meu passado, ter mais consciência de um presente e, por fim, conseguir decifrar meu futuro. Na próxima semana começo a explicar como foi esse meu mais recente retorno ao sul. Até lá!