DIÁRIO DE MOCHILA – Longa jornada rumo ao Sul

Buenas! Na última semana comecei os relatos do início de minha jornada de volta para casa, quando faria meu maior trajeto de carona em minha vida. Nessa semana dou sequência nessa grande aventura! Boa leitura!

FOTO – Pipe viajando de caminhão, pernas pro ar (e); rede, que virou cama improvisada no caminhão (d)
3 de maio de 2023

Expectativa x Realidade

Após iniciar meu grande trajeto saindo do litoral cearense, cheguei então em Pesqueira, no sertão pernambucano, e fiquei de plantão na espera pelo meu amigo caminhoneiro Anderson. Ele me pegaria lá para pois era caminho de sua rota. Após fazermos algumas entregas pelo Brasil, iríamos em direção ao sul para, após mais de um ano, eu rever minha família. Anderson mora em uma cidade no extremo sul de Santa Catarina, muito próxima à minha, que fica ao extremo norte do Rio Grande do Sul. Uma carona perfeita, teoricamente falando. Digo isso porque o que era para ser algo simples foi se tornando algo bem complicado com o passar dos dias. Um belo exemplo da vida de quando as coisas não estão sob nosso controle. Quanto mais dependemos de agentes externos, mas perdemos algum tipo de conhecimento real de nosso futuro. E quando isso é aliado à criação de expectativas, piora consideravelmente. Anderson é uma pessoa maravilhosa e muito crente a Deus. A forma como ele leva a vida é de sempre estar otimista. Tudo vai dar certo sempre. Mas a vida não é assim. Principalmente quando isso não depende apenas de nós. Por isso aprendi a não criar expectativas sobre nada. Porém, o Anderson está na estrada a mais de 20 anos. Para mim, no início, aquele otimismo todo era também aliado a muita experiência. Então foi meio inevitável, desde o início, não criar uma grande expectativa sobre a velocidade que eu chegaria no sul.

Cheguei em Pesqueira em uma sexta feira. A previsão inicial seria de Anderson me pegar lá entre domingo e segunda-feira e, após 4 ou 5 dias, chegarmos em casa. Ou seja, em minha cabeça, até o final de semana seguinte eu já estaria com minha família. Porém foram necessárias 3 semanas para que isso acontecesse. E agora vou explicar um pouco do porquê disso e das aventuras que passei cortando em um caminhão um dos maiores países do mundo.

 

Aguardando com conforto

Em Pesqueira, os 3 dias que seriam para eu esperar Anderson se tornaram 7. Isso porque a carga de Anderson, lá em Santa Catarina, atrasou. E consequentemente, sua chegada em Pesqueira e minha chegada em casa. O primeiro imprevisto da viagem mesmo antes de eu entrar na carreta. Já foi um primeiro baque mas que, pelo meu contexto do momento, passou a não ser algo tão ruim. Afinal, eu estava na casa de Luana. Uma menina muito especial que a jornada colocou em minha vida e que tenho grande conexão. Estar com Luana sempre era muito agradável. Por lá ainda criei uma conexão grande com seus amigos e até familiares. Uma das principais famílias que minha viagem me deu. E para finalizar, eu estava com conforto. Uma cama, banheiro e cozinha acessíveis. O que era um luxo para mim. Até uma smart TV para ver uma série de vez em quando. Logo, essa espera, apesar de inesperada, não se tornou algo tão difícil.

Depois de uns dias, tinha um lado meu que até queria esperar mais, de tão bom que era estar em Pesqueira. E essa foi, disparada, minha melhor fase dessa jornada de volta. Anderson chegou em Pesqueira na quinta-feira de manhã e, supostamente, iria descarregar, me buscar e seguiríamos a estrada. Porém, só foi conseguir descarregar no dia seguinte à tarde. Um segundo imprevisto e atraso. Mas como disse, naquele meu contexto, nada que realmente me prejudicasse. A única coisa que inevitavelmente mudava era minha data de chegada ao sul.

FOTO – Pipe, Luana e seus amigos em Pesqueira

Embarcando

Anderson me pegou em Pesqueira numa sexta à tarde. Foi muito legal rever esse amigo que a estrada me deu. Ele havia me dado uma carona, praticamente um ano atrás, quando eu havia retornado ao nordeste após ficar mais de um ano pelo. centro do Brasil. Agora era ele quem estava me tirando do Nordeste de novo. A previsão de Anderson, sempre muito otimista, era de chegarmos no Sul em até 5 dias. Eu não sabia ainda, mas para que isso acontecesse, todas as entregas teriam que sair mais do que perfeitas. Nossa primeira parada foi em Recife, que já não saiu como planejado. Como chegamos na empresa já de noite, ela só aceitaria a descarga na manhã seguinte. Dormimos por lá uma noite. Em 99% dos casos, não existe nenhum tipo de alojamento para os motoristas. Eles dormem em seu próprio caminhão na frente da empresa ou vão até alguma garagem ou posto de gasolina para pernoitar. Nesse caso, dormimos em frente da empresa que ficava (como a maioria) em uma região mais industrial. Lugar para colocar barraca estava difícil, o que piorava com a presença da chuva. Então, pela primeira vez em minha viagem, dormi dentro do baú do caminhão. Com minha rede. Forma como basicamente dormir em todas minhas noites dessa viagem. No dia seguinte, descarregamos cedo e partimos para João Pessoa, local onde Anderson teria que descarregar e também carregar seu caminhão.

 

Teste de paciência

Saímos de Recife em direção a João Pessoa no sábado pela manhã. Como o trajeto não é longo, sabíamos que ainda a tarde estaríamos na capital Paraibana. E, segundo Anderson (e seu grande otimismo), ainda naquele dia ele conseguiria fazer o que tinha que fazer para seguirmos estrada. Chegamos e, muito rapidamente, seu nome foi anunciado no microfone (prática normal nessas empresas para chamar os motoristas para carregar ou descarregar). Uma euforia tomou conta de mim: “Uhuuu! Hoje mesmo já vamos embora!”. Mas não. Anderson foi chamado apenas para descarregar. A velocidade para essa parte do trabalho sempre é maior porque as empresas já estão esperando de alguma forma aquilo que foi solicitado. Porém, carregar é outra história. É muito vago. Fica a critério de a empresa entender que precisa despachar algo para o local aonde motorista vai (no caso de Anderson, Santa Catarina).

Então, começou uma espera que durou 5 dias. Isso mesmo. Ficamos 5 dias esperando a carga. Como no domingo sabíamos que a empresa não funcionaria, aproveitamos para ir à praia. Mas os outros dias foram em frente à sede da empresa. Uma área industrial com um calor absurdo. E numa agonia sem fim de aguardar o chamado no microfone, que poderia acontecer a qualquer momento. Para Anderson, todo dia era o dia. “Hoje vai sair, tenho fé em Deus”. E aquele otimismo passava para mim uma expectativa que todo final da tarde, no fechar da empresa, era frustrado. E lá ia eu dormir no baú do caminhão e aguardar um novo dia. A parte boa desse período ficou com Mara. A dona de um pequeno barraco que vende café e comida para os motoristas que aguardam carga. Uma figura. Xingava todo mundo, mas na diversão. Nos últimos dias eu já xingava ela e ela a mim. Além de Mara, eu me entretinha com palavras cruzadas que eu havia comprado em um posto de gasolina. E com caminhadas diárias pelas indústrias nos finais de tarde para aliviar a tensão. Fomos conseguir carregar e sair de João Pessoa apenas na quarta-feira à tarde. Após essa grande tortura, veio o alívio. Partimos então para nosso próximo destino.

 

Voando pelo Brasil

A parada seguinte seria no sertão da Paraíba, já indo em direção a BR-116, que depois nós levaria em direção ao sul. E esse foi o trecho mais bem sucedido de nossa viagem. Como saímos no final da tarde de João Pessoa, pegamos a estrada à noite. Paramos em um posto para uma dormida rápida e seguimos para a cidade de Paulista, no alto sertão paraibano. O trecho foi longo e com estradas não muito favoráveis, mas muito cedo na quinta feira chegamos ao destino. Pelo fato de a empresa que descarregaríamos ser pequena, foi tudo muito rápido e fácil. Sem burocracias. Até eu consegui entrar na empresa. E na ânsia de ir embora, ajudei os funcionários da empresa a descarregar a carreta as embalagens plásticas que Anderson costuma transportar. Em menos de uma hora estávamos livres e seguimos estrada. Foi um dia inteiro de estrada, parando apenas para fazer xixi e pegar alguma coisa para comer. Fomos dormir apenas em Feira de Santana, no interior da Bahia. Nesse dia, vencemos mais de 1000 km. Anderson também queria terminar essa jornada o quanto antes para ficar com sua família. A ânsia não era apenas minha.

Depois de Feira, pegamos mais um dia inteiro de estrada em direção ao interior de Minas Gerais, onde teríamos nossa última parada antes de ir pra casa. Nesse dia andamos novamente mais de 1000 km e já fomos dormir próximos de Belo Horizonte. Foi uma dormida muito rápida pois o dia seguinte já era novamente um sábado. E sabíamos que a empresa não trabalharia no domingo. Não queríamos passar de novo pelo que passamos por João Pessoa. Era muito café e muita conversa para ambos permanecerem acordados e seguindo o trecho. Estar acompanhando um caminhoneiro requer, além de paciência, muita parceria. Um dos motivos que eles gostam de dar carona é justamente por isso. A parceria de ter alguém do lado, simplesmente por ter, mas também por ter alguém para poder conversar e se manter acordado. Eu nunca dormi ao lado de um caminhoneiro. Sempre aceitei apenas dormir quando ele também dormisse. Meu senso de empatia nunca me permitiu fazer o contrário. São momentos de euforia e conversas que se mesclam com outros de cansaço extremo e silêncio. Um grande teste psicológico. Na manhã de sábado chegamos em Carmópolis, nosso último destino. Por lá, teríamos que, novamente, descarregar e carregar. E o já habitual otimismo de Anderson nos dizia que conseguiríamos fazer tudo no mesmo dia e seguir para casa, onde em menos de 48h já poderíamos rever nossas famílias. Mas novamente, as coisas não saíram como o imaginado…

Na próxima semana eu conto meus últimos momentos de angústia com Anderson que me fizeram mudar um pouco dos meus planos, até eu conseguir, enfim, chegar em casa. Até lá!


Publicado em: Geral






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