DIÁRIO DE MOCHILA – Mágicos momentos no povoado de Cumbe

Buenas! Na última edição, contei sobre minha longa caminhada em meio as dunas de Canoa Quebrada para chegar ao pequeno povoado do Cumbe. Hoje, conto um pouco dos mágicos momentos que vivi por lá. Boa leitura!

FOTO – Antigo casarão, residência do Seu Corrêa (e); fim de tarde no rio Jaguaribe (d)
18 de fevereiro de 2023

Muito bem recebido

 

Após minha longa caminhada pelas dunas de Canoa Quebrada, cheguei então ao pequeno povoado ribeirinho do Cumbe. Me adentrei a comunidade depois de ver o belíssimo pôr do sol e quando as luzes do mundo já estavam querendo se apagar. E eu ainda não sabia por onde dormiria e o que comeria naquela noite. Ter que definir isso no meio da escuridão sempre é mais complicado. Porque para ambos os casos eu dependo do ser humano. E o ser humano sempre fica mais desconfiado durante a noite. E com razão. Primeiro porque, dependendo do lugar, se tem dificuldade de ver a pessoa com clareza (no caso, eu). E tenho total consciência que meus cabelos e olhos claros, junto com meu sorriso no lugar ajuda a abrir portas (literalmente). Porém a noite, isso já não fica tão evidente. E o segundo ponto é que, no Brasil, e talvez no mundo todo, é durante a noite que as pessoas saem para fazer coisas erradas. Justamente porque tudo está mais escuro, e o movimento nas ruas diminui, ou termina de vez. Logo, todos ficam mais ressabiados durante a noite. Ou seja, eu precisava correr. Resolvi tentar algum acolhimento com a primeira casa que apareceu no meu caminho. Ela era afastada do “centro” do povoado. Uma única casa isolada em meio ao mato. Anexada a ela, uma muito bonita e antiga Igreja. Até achei curioso esse fato, o que me deu mais vontade de tentar ficar por lá. E na frente dessa igreja um pequeno coreto que eu notei que minha barraca poderia entrar perfeitamente. Passei pelo portão e bati umas palmas para ver se alguém aparecia. Um jovem rapaz apareceu. Esses momentos são complicados. Ter que explicar basicamente minha história de vida em poucos segundos, para justificar o porquê de eu estar ali naquele momento fazendo pedidos. Eu prefiro fazer assim do que simplesmente dizer: “Oi, posso colocar minha barraca no teu terreno?”. Explicar um pouco mais de quem sou me ajudo a ter sucesso no que busco. Eu sempre analiso caso a caso. Mas numa situação dessas, onde um completo desconhecido surge todo sujo e suado, com uma mochila gigante nas costas, um facão a mostra, no início da noite e, para finalizar, numa comunidade que não está acostumada a receber ninguém de fora, não é o contexto mais favorável. Daí a necessidade de tentar deixar tudo o mais claro possível. Enfim, pratiquei um “Se vira nos 30” com o rapaz e ele disse para eu entrar e falar com o pai dele. Já era um bom sinal. Sinal também que o povo por lá não era muito desconfiado.

Entrei e conheci o Seu Correia. Um senhor de idade, mas muito bem conservado. Expliquei novamente minha história e ele decidiu me acolher sem pensar muito. Disse que eu poderia colocar minha barraca em sua varanda e que, por lá, eu poderia tomar um banho e comer com eles. Sucesso! Minha noite estava garantida. E ainda por cima, Seu Correia era uma pessoa de refinada educação e com uma bagagem cultural gigantesca. Conversamos por muito tempo, primeiro sobre minha vida, depois sobre a dele e as histórias do povoado. A Igreja em seu pátio foi construída por seu bisavô, então coronel de lá. Descobri que ele era o presidente do Museu da Cidade de Aracati (município ao qual o Cumbe pertencia). Todo dia ele se deslocava para o centro, por onde ficava comandando esse centro cultural. Ao ver como eu era um interessado por história, me convidou para no dia seguinte passar o dia por lá com ele, conhecer o museu e fazer um tour cultural por Aracati. Disse que eu poderia dormir mais uma noite em sua casa sem problemas. Cai no lugar certo.

 

Um banho cultural

 

Após uma noite de muito descanso, cedo do dia seguinte, após comer um cuscuz no café da manhã, fomos para o centro de Aracati. De carona, como eu já estava acostumado nos últimos anos. Essa cultura é muito comum nos pequenos povoados do Brasil. Como poucos são os que tem carros, os que não têm geralmente ficam num ponto já determinado esperando algum morador passar e embarcam junto. E assim chegamos na cidade, após uns 15 minutos de estrada. Uma das mais antigas cidades do Ceará. Tomada por casarões do século XVIII e XIX que ostentam belíssimos azulejos portugueses em suas fachadas. São mais de 30 tipos diferentes espalhadas pela região histórica. Todos os azulejos originais. Seu Correia me levou ao museu, me apresentou a todos e me deu uma aula sobre a cidade e o estado do Ceará. Após isso, caminhamos pelas ruas e paramos para comer uma panelada (típico prato cearense com miúdos do boi, que eu amo de paixão) no restaurante mais antigo da cidade. Fumamos um cigarro em frente à Igreja Matriz e depois fui ao supermercado ajudá-lo a fazer alguma compras. Já era meio na tarde quando voltamos ao Cumbe.

FOTO – Seu Correia dando aulas sobre os azulejos de Aracati

 

 

Seguindo meu caminho

 

Seu Correia havia me dito que eu poderia ficar quantas noites quisesse por sua casa, mas a estrada me chamava. Minha ideia era conseguir cruzar o Rio Jaguaribe, o qual o povoado ficava as margens, e seguir minha jornada em direção ao litoral oeste do Ceará. A forma convencional para se fazer isso, era indo até o centro de Aracati e pegando outra estrada que num determinado momento cruzava esse rio através de uma ponte. Mas seria uma volta muito grande para se fazer. E sem graça. Eu sabia que havia diversos pescadores pelo Cumbe que todo dia iam nas áreas de manguezais com seus pequenos barcos pescar ou caçar caranguejos. E, sabendo conversar, eles me atravessariam para o outro lado no amor. Expliquei meu contexto para o Seu Correia que, entendeu, e me indicou o nome de um dos mais antigos pescadores da comunidade e presidente da associação dos moradores. Ronaldo o nome dele. Era final da tarde quando me despedi de Seu Correia, peguei minha mochila e fui atrás de Ronaldo. Minha ideia já seria atravessar naquele mesmo dia se eu desse sorte. E eu já tinha a grande referência de ter passado uma noite na casa de um morador muito respeitado no povoado. Isso facilita muito as coisas para um próximo passo. O povo já passa a confiar com muito mais facilidade. Então essa travessia não seria difícil, ou uma outra casa para passar a noite.

 

O craque Ronaldo

 

Seu Correia me deu uma não muito exata referência de onde Ronaldo morava, então, sai caminhando pelas ruas e pedindo aos moradores informações de onde era sua casa. Adoro fazer esse tipo de busca. Então, não demorei pra achar a moradia de Ronaldo. Além de ser sua casa, era um clube da comunidade. Na beira do rio, com quadra de futebol e espaço para festas. E alguns moradores faziam fila pra jogar sinuca. A mesa era uma novidade total no povoado. Havia chegado não fazia uma semana. Todos olhavam para mim sem entender nada. Aquele grande silêncio e olhares que já estou acostumado. Perguntei sobre Ronaldo e me apontaram onde era sua casa. Era uma espécie de vila. Algo muito comum no Nordeste, quando se constroem diversas casas no mesmo terreno, uma colada na outra. É quando a família não quer se separar muito. Daí geralmente o patriarca constrói uma para cada filho, que traz seu conjugue e cria seus filhotes também. Uma grande família. Já passei em algumas como essas em minha viagem e sempre adorei a energia do lugar. Para mim, quando vejo um lugar como esse, já parto do princípio de que há muito amor envolvido. E sempre é assim. A energia de acolhimento é outra. Achei o Ronaldo. Pessoa de extrema educação e simpatia. Antes mesmo de eu entrar em grandes explicações, já me convidou para sentar e me trouxe um café. Contei minha situação e ele me disse que no dia seguinte, ao amanhecer, sairia para coletar as armadilhas de caranguejo que havia colocado naquele dia. E assim, poderia me levar para o outro lado do doo sem problemas. Nem precisei perguntar sobre onde dormir, pois ele já me levou até uma das casas, que estava vazia, e disse que eu poderia descansar por lá aquela noite. Uma casa inteira só pra mim (por uma noite, mas só pra mim). Tomei um belo banho e depois me juntei a Ronaldo e sua família para a janta. Um cuscuz com camarão espetacular. No dia seguinte, acordaríamos ainda de madrugada para tomar o café da manhã e partir para a travessia. Combinei com Ronaldo que, antes de ele me levar até o outro lado, deixaria eu ajudá-lo com a busca dos caranguejos, algo que eu nunca havia feito. Ele topou na hora. Me despedi de todo e me recolhi em “meus aposentos”. Tive uma bela noite de rei.

Na próxima semana conto de minha saída do povoado do Cumbe e da sequência dos meus caminhos rumo ao litoral oeste do Ceará. Até lá!


Publicado em: Turismo






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