DIÁRIO DE MOCHILA – Nos altos do sertão da Paraíba

Buenas! Na edição da semana anterior, dei um stop em minha andanças por esse Brasil para fazer uma reflexão sobre a vida. Agora eu volto de onde parei, no sertão paraibano, por volta de agosto do ano que já passou. Boa leitura!

FOTO - Visual da Serra da Catingueira
14 de janeiro de 2023

Já faz 3 semanas quando escrevi sobre minha chegada à cidade de Catingueira, no alto sertão da Paraíba. Nessa muito pequena cidade, de cerca de 4 mil habitantes, fui acolhido por uma família composta por um padre, sua mãe (moradora viva mais velha do município) e seu sobrinho, uma pessoa especial que ficou famosa no Instagram, com quase 1 milhão de seguidores. Tudo isso em uma casa com quase 200 anos de vida. Muito peculiar o cenário. Mas quando decidi ir a Catingueira, não foi por esse motivo. Até porque, quando chego em um local de forma aleatória, nunca posso imaginar se serei ou não acolhido e quem fará isso. O que me moveu até lá foi a esplendorosa serra que toda tarde faz sombra nesse pequeno lugarejo. A Serra da Catingueira. E se tem uma coisa que aprendi a gostar em minha jornada é de não só subir, mas dormir em cima dessas serras selvagens. Uma mescla de um desafio pessoal com um contato gigantesco com a natureza e comigo mesmo. Geralmente, se pode observar os espetáculos do pôr e nascer do sol, assim como uma noite absolutamente estrelada. Os moradores locais, que não acreditavam que eu iria subir e dormir sozinho na serra, sem nunca ter ido, já haviam me falado que havia um único morador lá em cima, mas que as vezes também ficava pela cidade. Zé da Cascavel o nome dele. Dizem que ganhou esse apelido após se curar de uma picada de Cascavel. Lenda? Não sei. Me falaram também que por lá, seria um bom local para eu colocar minha barraca naquela noite. Assim, peguei algumas garrafas de água, uma marmita de cuscuz com linguiça (que seria minha janta e café da manhã), coloquei em minha grande mochila e parti para a aventura.

 

Subindo a serra

Era início da tarde quando iniciei a trilha da subida. O sol estava forte. No caminho, diversos tipos de cactos típicos da caatinga. Quanto mais eu subia, menores ficavam as casinhas de Catingueira. Vi alguns mocós pelo caminho, um típico roedor do sertão. Após cerca de 2 horas de caminhada, cheguei ao topo da serra. Ainda não com o melhor visual, mas a subida havia acabado. Antes de tudo, procurei a casa de Zé da Cascavel para ver as possibilidades de minha barraca ficar por lá aquela noite. Sempre que faço esse tipo de aventura, me preocupo primeiro em achar um local ideal para colocar a barraca (bem protegido de ventos e possíveis chuvas). Só após que entro no modo curtição e me delicio com os visuais. Achei a casa. Como eu imaginava, muito simples e de taipa. Estava toda fechada. Bati palmas, gritei, mas ninguém apareceu. Cheguei a conclusão que Zé não estava por lá. Mas seu cachorro sim. Nenhum tipo de ameaça, pelo contrário. O pobre animal estava amarrado a uma árvore com cerca de 2 metros de corda apenas. Mal tinha forças para conseguir latir com a minha chegada. Era apenas pele e osso. Seu assustado rabo abanava muito timidamente para mim. Tomado por pulgas e carrapatos. Seu pote de água já estava quase seco e comida por perto não havia. Amo demais o povo sertanejo, mas esse ponto é um que me deixa muito chateado com eles. Para eles, animal é feito apenas para servir o homem. Não necessita de cuidados, nem carinho. Pelo contrário, merecem receber agressões se não fizerem o que for pedido. É uma questão cultural, não julgo. Mas é triste de ver. E eu sou o oposto a isso. Me jogo no chão da rua para receber lambidas desses seres de luz que são os cachorros. E ver aquela cena mexeu comigo. Mas o sol já estava querendo se pôr e eu não queria perder o espetáculo. Montei minha barraca por ali, embaixo de um cajueiro, e fui apreciar o entardecer.

 

Espetáculos da natureza

Caminhei até um grande lajedo que havia em cima da serra. Visão perfeita do sol desaparecendo em meio a uma cadeia de montanhas no horizonte. Com o passar dos minutos as luzes do mundo vão ficando cada vez mais fracas. Esse é o momento que mais gosto. É quando cai minha ficha de que vou dormir num local como aquele. Após isso, escuridão e estrelas. Era noite sem lua, o que deixa as estrelas mais visíveis ainda. E uma vez um amigo da estrada me disse: “Olhar para as estrelas é olhar para o passado”. Sempre lembro disso.

Quando olhamos uma estrela, estamos vendo um brilho que foi emitido a centenas ou milhares de anos atras. Às vezes, cerca de 3.000 anos. Nesse caso, uma estrela que está há 3.000 anos luz de distância da terra. Ou seja, para se chegar até ela, viajando na velocidade da luz (algo próximo a 300mil kms/segundo), demoraríamos 3.000 anos. Quer dizer que o brilho que vemos hoje dessa estrela, foi gerado antes de Cristo. Inclusive, nesse meio tempo ela pode ter implodido e nem existir mais. Mas continuamos enxergando-a. Doideira né? Mas esse tipo de estrela que falo são as que conseguimos ver a olho nu. Com super telescópios, já se acharam estrelas há quase 30 bilhões de anos luz da terra. O papo fica mais doido ainda. E tudo isso sempre me faz lembrar do quão insignificante eu sou no espaço e no tempo desse universo. Sou uma pulguinha dentro de uma poeira cósmica, que é o planeta terra. E, se muito, vou viver uns 90 anos. Não sou nada. Mas ao mesmo tempo sou tudo. Isso me ajuda a deixar as coisas mais leves em relação aos problemas que rondam minha cabeça. Tudo fica mais simples.

FOTO – Casa do Zé da Catingueira

Matando a fome

Após voltar para minha barraca, já no escuro, vi novamente o cachorro. Por um momento eu havia esquecido dele. Abri minha marmita para jantar. Eu estava com muita fome. E ela teria que render ainda uma parte para ser meu café da manhã no dia seguinte. O pobre bichinho, mais desesperado de fome que eu, ao sentir o cheiro da comida, me olhava com um olhar profundo clamando por ajuda. Não consegui aguentar. Sabe-se lá quando o seu dono apareceria novamente. Eu iria descer no dia seguinte e teria comida e água a minha disposição. Primeiro, enchi seu pote de água com uma de minhas garrafas. Depois, após dar algumas colheradas em meu cuscuz, para não dormir com tanta fome, deixei a marmita para o animal comer. O pobre bicho devorou tudo em menos de 10 segundos, tamanha era sua fome. Dormi com a barriga não muito cheia, mas com a consciência leve. No dia seguinte eu matava aquela fome.

 

Zé da Catingueira

Acordei ainda na madrugada para conseguir ver o sol nascer. Caminhei até as mesmas pedras que eu havia ido no dia anterior. Mais um belo espetáculo. Após, voltei para organizar minhas coisas e descer a serra. Enquanto eu desarmava minha barraca, escuto algumas vozes se aproximando. Imaginei que deveria ser o Zé da Cascavel. E era ele mesmo. Junto com seu amigo. Cada um com uma espingarda na mão. E eu dormindo em seu terreno. Pensei que a caça naquele momento poderia ser eu. Ambos seguraram as armas numa posição de meio ataque enquanto me perguntavam quem era e o que eu estava fazendo lá. Expliquei brevemente minha história, incluindo mencionando os nomes das pessoas que estavam me acolhendo na cidade. Aí eles baixaram a guarda. Ufa. Estavam caçando, por isso as espingardas. Após umas conversas mais “mateiras”, falei com Zé sobre seu cachorro. Expliquei que deixá-lo naquelas condições não é legal. Perguntei: “Imagina se fosse tu preso nessa corda, tu serias feliz?”. Ele não sabia o que responder.

Como já disse, não fazem isso por mal, é a cultura deles. Sabendo conversar existe a possibilidade de eles colocarem a mão na consciência. Até pensei em ser mais radical e cortar a corda, mas eles estavam armados. E ir contra eles dessa forma poderia significar eu ficar o resto da minha vida naquela serra. Porém enterrado. Esse povo é amável, mas numa situação que pode não agradá-los o assunto se resolve na bala. Eu disse ter dado minha comida ao cachorro. Prontamente, Zé preparou um cuscuz com linguiça e café, em seu fogão de barro, para todos, inclusive o bichinho. Conversamos mais um pouco sobre a vida e, quando o sol já tinha a força de um sol próximo do meio dia, desci a serra da Catingueira. Espero ter deixado algum tipo de legado lá por cima.

Quando cheguei na casa do meu amigo Padre, fui recebido como um quase herói. Afinal, além de ser a primeira vez que a pacata Catingueira havia recebido um mochileiro que estava dormindo em sua praça, fora a primeira vez que alguém dormiu sozinho em cima da serra. E no meu caso, sem nunca ter ido. Comi bastante e descansei por lá mais uma noite. Antes de dormir olhei mais uma vez para as estrelas, acima das luzes da Igreja. Todo aquele passado complexo e multimilenar escancarado em minha frente, e eu sem entender o meu próprio de 32 anos. Afinal, por que eu estava fazendo tudo aquilo? Como cheguei nesse ponto? A estrada estava aos poucos me dizendo e eu sabia que em breve ela me daria as respostas certas.

Na próxima semana conto de mais algumas aventuras pela Paraíba e minha volta ao sertão cearense do Cariri. Até lá!

 

 


Publicado em: Turismo






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