DIÁRIO DE MOCHILA – Novas andanças e caminhos pelo sertão nordestino

Buenas! Na semana anterior, minha pauta muito reflexiva falou das semanas que passei por João Pessoa e entrei como nunca em minha mente. A partir de agora, falo de minha terceira passagem pelo sertão nordestino e dos mágicos caminhos que percorri. Boa leitura!

A esquerda, bode em típico cenário sertanejo. A direita, Pipe e amigas de São Domingos do Cariri
10 de dezembro de 2022

E a vida segue

 

Após meus dias psicologicamente turbulentos por João Pessoa, resolvi voltar ao sertão. Mas dessa vez, cortando o interior do estado paraibano, que eu ainda não havia conhecido. Eu me sentia meio fragilizado e imaginava que o acolhimento do povo sertanejo me faria bem. Meu mais profundo interior me dizia que alguma mudança em meio estilo de vida teria que ser feita. Essa foi a maior verdade que havia me aparecido em João Pessoa e que, nos meses anteriores, eu estava tentando não ver. O que eu faria ainda não sabia. Haviam infinitas possibilidades. Inclusive esse é um dos grandes problemas que a liberdade nos traz. Saber que tudo é possível as vezes te deixa confuso. Eu poderia trocar meu estilo de locomoção da carona para uma bicicleta. Pegar essa bicicleta e cortar a África. Ou comprar um veleiro e sair pela oceanos do mundo. Ou também, comprar uma van e sair fazendo projetos sociais em regiões pobres da América Latina. Tudo era(é) possível. Mas não adiantava eu me afobar. O principal eu já tinha, que era saber que do jeito que estava não dava mais. Meus deslumbre estava acabando. O que seria depois, só o tempo diria. Nessa época, em agosto desse ano, eu já sabia que, antes do final do ano, eu iria aparecer em minha casa, no sul, para rever minha família e amigos. Resolvi então levar minha vida com o máximo possível de leveza até lá. Eu sentia que esses próximos meses me reservariam grandes surpresas internas e minhas conclusões chegariam, mais cedo ou mais tarde.

 

“Roliúde” Nordestina

 

Logo em meus primeiros dias voltando ao sertão, passei numa muito pequena e simpática cidade do interior da Paraíba, chamada Cabaceiras. Parece uma cidade de boneca. Tanto que ela é tida como a capital nordestina da produção de filmes e afins. A “Roliúde Nordestina”, como o próprio letreiro em sua entrada ostenta. Por lá, dezenas de filmes, séries e curtas foram gravados nas últimas décadas. Destaque maior para o famoso “O Auto da Compadecida”. Ao chegar nesse pequeno município e ir conhecer sua charmosa Igreja, uma menina veio ao meu encontro, após ver minha cara de gringo e minha mochila. Ela era a secretaria de turismo de Cabaceiras. Após alguns minutos de conversa, ela disse para eu subir em sua moto, pois havia um bom lugar para eu colocar minha barraca a noite. Me levou então até o histórico presídio da cidade. Coisa do século XIX. Hoje desativado, abriga um museu e a sede da secretaria de cultura e turismo da cidade. Já posso dizer que uma vez em minha vida dormi em um presídio. A noite, após sair para comer algo e dar uma caminhada, cheguei em uma apresentação musical de crianças no salão paroquial da cidade. Meninas com menos de 10 anos tocavam seus violões e cantavam “Luar do Sertão” de uma forma mágica. Nesse momento, um sentimento muito estranho tomou conta de mim. Nas últimas semanas eu estava chegando a conclusão que meu estilo de viagem teria que mudar, mas olhar aquilo fez eu pensar como seria difícil. Esses tipos de surpresas que aparecem são muito especiais. Eu enchi meus olhos de lágrimas mas segurei o choro. Eu já estava chamando a atenção por ser alguém de fora. Chorando, o pessoal não entenderia nada. Mas foi uma emoção boa. Apesar dos pesares, eu amava o que eu fazia.

FOTO – Antigo presídio de Cabaceiras virou museu

 

 

Costura

 

Após minha saída de Cabaceiras passei em mais algumas cidades e pequenos povoados do sertão paraibano. Destaco a pequena e pacata São Domingos do Cariri, onde fiz muitos amigos e fui muito bem acolhido. Um município onde seus pouco mais de 4mil habitantes vivem basicamente da costura. Essas roupas que normalmente compramos em feiras baratas e “camelôs”, Brasil a fora. O que me surpreendeu foi saber que pessoas chegam a receber 1 centavo por peça costurada. Trabalhando cerca de 10 horas, muito bem focadas, se pode ganhar 25,00, 30,00. São os casos mais extremos, mas existem. O mais interessante foi ver que ninguém questiona isso de alguma forma. Para a realidade de lá, está ótimo. Todos estão felizes. Existe trabalho. Antes nem isso existia, e a forma de ter alguma renda também. Essa foi uma cidade que em algum momento até pensei em parar e morar um tempo. Pelo acolhimento do povo maravilhoso, e vendo a possibilidade de poder melhorar essa situação de trabalho deles. Não segui, mas deixei parte do meu coração por lá.

 

Caminhando pelo sertão

 

Mas um local do interior da Paraíba passou a se tornar muito especial em minha jornada. Monteiro o nome da cidade. Município não tão pequeno, se relacionado as outras cidades paraibanas. Local onde a transposição do Rio São Francisco deságua na nascente do Rio Paraíba. Lindo de ver. E de tomar banho. Após chegar e achar um local para almoçar, conversei com uns locais, que me falaram de belos lajedos que haviam no interior da cidade. Pesquisei um pouco e realmente tinham muitas belezas escondidas por lá. Caminhei alguns kms pela estrada de asfalto e entrei em uma estreita estrada de chão, onde caminhei por mais vários kms. Passando apenas pela caatinga e muitas pedras. Quando achei a primeira casa, parei para pedir água e pegar informações. Sempre fui meio ruim de interpretação. Ou seja, tenho uma certa dificuldade de entender esses tipos de informações. No nordeste, a situação piora, pois a forma de se explicar é muito diferente da do sul. E para finalizar, nesse caso, quem estava me passando as coordenadas era um senhor que havia feito traqueostomia. Ou seja, sua voz praticamente não saia. Em resumo, não entendi nada, mas segui andando. Não achava os tais dos lajedos.

 

O acolhimento sertanejo

 

Após algumas horas de caminhada, o final de tarde se aproximava e minha água acabava mais uma vez. E ficar caminhando no sertão nordestino com 25kg nas costas sem água é inviável. Parei em mais uma casa onde um muito idoso senhor veio me receber. Ele perguntou onde eu estava indo. Disse que buscava conhecer os lajedos. Ele conseguiu me explicar como chegar lá, mas me pediu que ficasse em sua casa aquela noite e fosse no outro dia. Já estava escurecendo. Como eu ainda não sabia onde dormiria, estava com fome e sem comida, resolvi aceitar. Seu Pedro Tomé, mais conhecido como Pedrosa. 77 anos e esbanjando disposição e alto astral. Tem sua esposa que fica na cidade, enquanto a maior parte dos dias da semana ele fica na roça cuidando de seus animais. No dia que eu cheguei ele havia ido ao dentista em Monteiro para fazer sua chapa. Dentes já eram difíceis de achar naquela boca risonha. Apaixonado por poesia e repente, passou um pouco desse fervor para mim. Essa região, na divisa da Paraíba com o Pernambuco, é uma das mais poéticas do país. Terra dos mais famosos repentistas. Seu Pedrosa sempre carrega seu radinho de pilha ligado nas emissoras locais que tocam as “cantorias” 24h por dia. Conversamos muito sobre a vida, felicidade e contamos um ao outro histórias. Eu, sobre minhas andanças. Ele adorava ouvir. Ele, sobre sua vida. Nasceu naquela mesma casa onde estávamos. Ele e seus 19 irmãos. Desses, apenas 9 superaram vivos a infância. Uma muito normal realidade do sertão mais antigo. Perder um irmão/filho, ainda criança, naquela época, era tão comum como ter um grande período de seca. O mais interessante é ver como isso parece não deixar as pessoas abaladas. Pelo menos parece. Acho que o sertanejo aprende a lidar com tanta dor e sofrimento que alguns casos extremos passam despercebidos. Como diz em Disparada: “Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar…”.

Lajedo em Monteiro-PB

Toda poesia de Pedrosa

 

Seu Pedrosa me acordou aboiando (som tradicional dos vaqueiros sertanejos) as 4h da manhã. Parecia um adolescente acordando um velho. Ao som de um repente que tinha como mote a frase “Quem bate pra ensinar, tá ensinando a bater”, tiramos leite da vaca ao amanhecer. Um cenário mais que poético. Seu Pedrosa ainda fez alguns repentes diretamente para mim. Comemos cuscuz com leite e linguiça frita. Ajudei ele a tocar o gado para o pasto. Quando o sol já saia com mais força, me despedi dele para seguir minha caminhada antes que esquentasse muito. Ele até me pediu para ficar mais uns dias, mas a estrada me chamava. Após nos darmos um abraço, pegou meu contato de celular e, meio envergonhado, disse: “Vamos se falando no zap né? Só que tu tem que me mandar áudio, porque eu sei ler não”. Até hoje, difícil uma semana que não me mande mensagem, contando das novidades e fazendo repentes.

 

Reflexão nos lajedos

 

Seu Pedrosa me ensinou o caminho para ir até um dos lajedos. Cheguei em meia hora. Um belo e majestoso lajedo. Trata-se de uma pedra simplesmente gigantesca, lisa e em um formato meio oval. Como se fosse o casco de uma tartaruga gigante. Fiquei algumas horas por lá meditando, observando o lindo cenário e pensando na vida e no que eu havia aprendido com Pedrosa. Em alguns momentos ele me falou muito sobre como a família é importante. Algo que eu já sabia mas que, quando vem de alguém de fora, soa de outra forma. Lembrei muito dos meus pais e do meu irmão que muito longe estavam. Pensei que, talvez estar perto deles poderia ser o bem que eu procurava. Dali em diante a minha vontade de chegar no sul começou a ser cada vez maior. Diferente do ano anterior, quando parecia que eu estava indo mais para o bem de minha família do que meu. Em novembro eu iria, não queria ficar ansioso com isso. Mas passou a ser um ponto importantíssimo de minhas reflexões futuras.

Na próxima semana falo de minha sequência pelos poéticos caminhos do sertão paraibano. Até lá!


Publicado em: Turismo






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