DIÁRIO DE MOCHILA – Parque das Confusões e outras histórias no Piauí

Olá! Na semana passada falei dos meus dias no sertão cearense e da minha chegada no interior do Piauí. Sendo o Piauí um estado em que passei boas e memoráveis semanas - e nessa edição falo dos meus primeiros momentos por lá. Boa leitura!

FOTO - Pipe na Serra das Confusões
20 de novembro de 2022

Rumo as confusões

 

Meus primeiros dias pelo sertão do Piauí já me fizeram saber que eu estava em um local com povo muito acolhedor (o mais que achei até o momento no nordeste), recheado de belezas naturais, pinturas rupestres e muito, muito calor. A cultura por lá já é algo que me lembrou um pouco da cultura do centro oeste, mesclada com a do próprio nordeste. Se explica pela região onde o estado se encontra, no limite da região nordeste. Cidades pouquíssimo povoadas e muito afetadas pela seca. No período em que estive por lá, já faziam meses que não chovia. A caatinga estava numa transição entre o período verde e cinza. Um período em que a vegetação fica em um colorido surreal, devido às folhas que estão secando. Árvores em vários tons de verde, amarelo, vermelho e acizentadas. Um dos toques mágicos do sertão.

O primeiro destino que decidi ir pelo Piauí foi no Parque Nacional da Serra das Confusões. Eu já havia pesquisado que a região possuía diversos encantos naturais e muitas inscrições rupestres. E não era muito turístico, o que me interessava mais ainda. Isso me daria um contato mais real com o povo local e, muito possivelmente, trilhas vazias. E foi exatamente isso que encontrei por lá.

 

 

Sorrisos bondosos

Nos primeiros dias, ainda a caminho do parque, fiz caminhadas por estradas de chão, parando em pequenos povoados e conhecendo as paisagens. Povoados esses onde não se encontram opções comercias para eu me alimentar. Eu dependia única e exclusivamente da comida que o povo me dava. E isso nunca foi um problema por lá. Aquele muito pobre (financeiramente) e humilde povo me acolhia como se eu fosse um parente. Interessante foi ver o sorriso dos mais velhos. Dentes perfeitos, o que é muito raro de se ver em regiões pobres do Brasil. Isso devido a programas do governo que fornecem dentaduras aos que já estão com a arcada dentária mais debilitada. Locais sem nenhum tipo de cultura de higiene bucal, principalmente antigamente. Era fácil de ver como a auto estima desses senhores e senhoras aumentavam com esse novo sorriso. Numa casa que ganhei um almoço, o dono da casa até parecia o Richard Gere. E todos com coração muito bondoso.

 

Faturando bondade

 

Tive um caso interessante na comunidade de Serrinha, município de Caracol. Estava eu em minha barraca, embaixo de um alpendre de um bar, já dormindo. No meu dia a dia normal, entre 19h e 20h já estou roncando. Eram umas 22h quando sou acordado com um homem me chamando pelo lado de fora. Sonolento, abro a barraca. Ele pergunta se eu já jantei. Respondo que sim (mais cedo uma família havia me dado um balde de comida). Então, com uma nota de dinheiro na mão, ele a estende e me oferece. Eu agradeci de coração e disse que não precisava. Ele insistiu. Eu agradeci de novo. Disse para guardar e dar a alguém mais necessitado. Ele insistiu mais ainda. Disse que recebeu um chamado de Deus enquanto tentava dormir e que tinha me ajudar de alguma forma. Bom, não posso ir contra Deus.  Então, aceitei o dinheiro e agradeci sua bondade. Eram 20,00 reais, o que pra essa gente, não é pouco. Isso fez eu amar mais ainda o povo piauiense. Não pelo dinheiro, mas pelo o que aquilo representou.

 

Chegando nas Confusões

FOTO – Toca com Pinturas Rupestres

 

No dia seguinte, peguei caronas em direção ao pórtico de entrada do Parque Nacional. Minha ideia seria colocar minha barraca por lá uma noite e tentar arranjar uma comida com o vigia que eu sabia que dormia no local. Essa prática, teoricamente, é proibida. Mas não respeito muito esse tipo de regras. E deu certo. O vigia me recebeu super bem e dormi e comi por lá. Nesse mesmo dia, fiz uma trilha e peguei um final de tarde mágico. Só eu e a natureza, em cima de uma cadeia de morros com formato que eu nunca havia visto. Uma imensidão sem fim de natureza. Esse parque é considerado o com a maior área preservada do Brasil. Local recheado de todo tipo de vida selvagem, incluindo onças. Tive uma meditação única nesse dia e me conectei como a natureza como a muito tempo não me conectava. Olhei para um lado e para o outro, e não vi ninguém. Resolvi ficar como vim ao mundo, pelado. Quando me sinto muito conectado com a natureza, essa vontade vem instintivamente. Porém, nem sempre tenho a privacidade para operacionalizar. E é bom. Tudo fica mais natural. Deitei em uma ainda morna pedra recebendo a leve brisa do final de tarde e ouvindo o som dos diversos pássaros e araras que voltavam para suas árvores. O difícil foi ir embora.

Na manhã seguinte, me despedi de meu amigo vigia e entrei caminhando pela estrada do parque. Passei por uma estrada que julgo ser a mais diferente que já vi no Brasil até hoje. Estreita, cheia de curvas, descidas e subidas e em meio a paredões de pedra. Parecia coisa de outro mundo. Falando assim é difícil de explicar. No meio desse caminho, entrei em uma muito escondida trilha, a qual passei o resto da manhã. Grutas e cavernas que eu nunca havia visto igual. Sempre com o chão forrado de uma areia branca como se vê em algumas praias. Em uma delas, uma alta e estreita fenda natural coberta por um musgo de verde vivíssimo. A umidade do local fazia ele ser muito fresco. Fiquei por lá por mais de uma hora observando a dança das andorinhas que entravam e saíam de lá. Mágico demais.

 

Barreiro e sua magia

 

Após essa trilha, voltei para a estrada. Eu estava a cerca de 10km de um povoado que eu pretendia pernoitar. Visto o forte calor, a não muito curta distância e eu já estar um pouco cansado da manhã, resolvi esperar uma carona. Eu havia comido um cuscuz no amanhecer e não tinha mais alimento. Água eu havia pego em uma nascente na trilha anterior. E essa estrada não tinha fluxo nenhum. No final, fui conseguir uma carona com o primeiro carro que passou (após umas 5h de espera), no final da tarde, quando eu já me preparava para ir caminhando. Cheguei de noite nesse povoado, chamado Barreiro. Cerca de 15 a 20 pequenas casas espalhadas nas areias da caatinga. Um dos moradores, ao me ver chegar, foi ao meu encontro. Queria entender o que eu era e o que eu fazia lá com aquela mochila gigante. Contei minha história. Ele pegou a chave da escola e me deixou acampar por lá. Depois que eu tomei um banho e armei minha barraca, fui até a casa dele e comi fígado de leitoa com farinha. Eu estava morrendo de fome, comi como se não houvesse amanhã.

No dia seguinte, sai muito cedo para fazer uma longa trilha de cerca de 25km. Caminhando apenas por estradas de areia muito fofa que normalmente são usadas por carros 4X4 com turistas. Como já havia muito tempo que carros não passavam por lá, estava tudo tomado por mato. Um mato rasteiro típico do sertão, que larga uns espinhos nos sapatos de quem passa. De tempo em tempo eu tinha que parar para tirar espinho por espinho de meus tênis. Ou seja, foi uma caminhada tortuosa. Levei cerca de 10h para finalizar. Mas valeu muito a pena. Cenários que eu nunca tinha visto. Grutas, cavernas e muitas pinturas rupestres de cerca de 10mil anos. E ao longo de todo o dia, apenas eu de ser humano por lá. Após voltar ao povoado, os moradores só faltaram fazer um busto meu. Não acreditavam em eu ter feito tudo aquilo caminhando. Meu presente foi muita comida.

 

Cajueiro e sua magia

FOTO – Pipe e Costa

Após Barreiro, peguei uma carona (na carroceria de um velho caminhão, segurando um porco amarrado que grunhia sem parar) até o povoado seguinte, chamado Cajueiro. Esse, sem nenhum atrativo turístico de verdade, mas rodeado por lindas serras. Chegando por lá, num domingo, fui pedir informação de coisas bonitas pra conhecer a um morador. Costa o seu nome. Na hora já me convidou para entrar e comer alguma coisa. Depois de comer, disse que eu poderia dormir lá, se quisesse. Passei 3 noites em sua casa. Assim mesmo, só de passar na rua e pedir informação. Conheci seu pai, Seu Hermínio, morador mais antigo do município de Guaribas, aos 96 anos. Quando o conheci, não lhe dava 70 anos. Extremamente bem conservado, tanto no corpo como na mente. Todos os dias, caminhava cerca de 8km para ir e voltar a sua roça, além de pegar na inchada em sua lida. Me contou suas histórias antigas, de como as coisas eram em sua juventude. Disse já ter lutado pela vida com onça pintada e tamanduá bandeira. Costa, apenas no amor, me levou em algumas trilhas totalmente locais, com visuais únicos. Lugares onde apenas os moradores daquele povoado costumam ir. Enfim, as magias do sertão brasileiro…

Na próxima semana falo do meu segundo momento no sertão do Piauí, na região da Serra da Capivara, local de maior concentração de sítios arqueológicos da América Latina. Até lá!

 

 


Publicado em: Turismo






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