DIÁRIO DE MOCHILA – Uma nova visão para os relacionamentos (parte 2)

"Eu e Isa passamos algumas semanas juntos na estrada. Além do Sergipe, que mencionei em minha última coluna, passamos pelo litoral sul alagoano e parte do sertão nordestino. E agora vou contar algumas das histórias que tivemos nesse período, assim como os motivos de termos seguido caminhos separados

FOTO - A direita, Pipe com Isa no Litoral alagoano(d); acampado no litoral do Sergipe (e)
18 de outubro de 2022

Início

 

O início de nossa parceria foi bom, pelo lado de estarmos juntos novamente, mas ruim pelos primeiros sintomas (que naturalmente iriam aparecer) dos desconfortos de ambos os lados. Principalmente pela Isa. Afinal, era uma menina que estava acostumada a sempre dormir em sua cama, ter seu banheiro e cozinha a disposição e se locomover de formas mais convencionais. De uma hora para outra, estava ela com uma grande mochila nas costas, caminhando pelo forte sol nordestino, pegando caronas, tendo que dormir em uma barraca (na maioria das vezes nos cantos das cidades), usar banheiro de posto de gasolina, e por aí vai… Era inevitável que isso não fosse um baque para ela. Já era esperado. Houve uma situação, na bela cidade histórica de Penedo, em que decidimos que a barraca, naquela noite, seria montada em um palco que estava armado no praça central. Ou seja, algo muito vulnerável, mas que eu já estava acostumado. Após tomarmos banho em uma academia, que nos fez essa gentileza, Isa apareceu com uma vestido lindo, o qual seu corpo ficava mais exposto que o normal. Eu disse: “Isa, vamos dormir na praça da cidade. Melhor tu trocar de roupa, colocar algo mais discreto”. A tadinha chorou e disse que não queria perder sua feminilidade. Eu entendia mas, infelizmente, tínhamos que evitar certos riscos. Eu me sentia muito responsável pela integridade dela. Afinal, era eu quem estava a colocando naquele estilo de vida e ela só o fazia porque tinha confiança em mim.

Caminhadas mais longas também eram um problema pelo excesso de calor. E as noites de Isa eram geralmente muito mal dormidas, as vezes pela desconfiança de onde estávamos acampados, as vezes simplesmente por sua cabeça estar pensando muito em tudo. E consequentemente, eu também não dormia bem. E dormir bem nesse estilo de vida é muito importante. Enfim, as primeiras semanas foram mais complicadas em geral por essas questões. Tudo absolutamente previsível e entendível por todo o contexto. Em nenhum momento briguei ou julguei ela por isso. Inclusive eu dava os parabéns pela coragem que ela estava dispondo. Poucas mulheres tem a atitude de fazer o que ela estava fazendo. E eu tinha muita noção disso. Porém, esses problemas também começaram a me afetar. Meu sono, minha liberdade e a boa energia que eu procurava sempre manter. Essa boa energia também é muito importante. Ela ajuda a criar uma espécie de bloqueio enérgico para coisas ruins. E para quem vivia exposto como nós, passava a ser mais importante ainda. Mas o principal era que, nesses momentos, nossa conexão diminuía ou até deixava de existir. E eu sempre tinha claro para mim que esse era o ponto que faria nos manter juntos na jornada. Também houveram ótimos momentos de conexão, felicidade, diversão. Normalmente quando estávamos com mais estabilidade. Na casa de algum amigo que nos recebia, ou em campings e Air bnb que usávamos em alguns casos. Apesar de eu ter meu princípio de não gastar com estadia, esse período com Isa isso foi quebrado algumas vezes, justamente para não exigir muito dela. Tentávamos dar uma mesclada entre a “rooteria” de dormir da rua e o conforto de algum local com mais segurança e estabilidade. Por exemplo, na praia do Pontal do Peba, litoral alagoano, onde ficamos hospedados em um Airbnb e vimos o ano de 2022 chegar.

 

Meio

FOTO – No Catimbau, em meio a pinturas rupestres ancestrais

 

Com o tempo, as coisas foram de normalizando mais para Isa. Aquela doida rotina não estava mais a afetando tanto.  Nossos bons momentos passaram a ser também nas situações mais extremas de desconforto. Por algumas vezes, inclusive, após algum bom dia de estrada, tivemos relações sexuais acampados em postos de gasolina. Algo que até para mim era novidade. Tinha que ser tudo muito silencioso para não chamar a atenção.

Ao meu ver, nossos melhores momentos acabaram sendo na região do sertão nordestino. O povo litorâneo não tem a mesma receptividade que o do interior. No litoral a vibração do medo, descaso e desconfiança é gigantesco. No interior as pessoas são mais puras. Elas podem até ter os problemas delas, mas para quem vem de fora estão sempre de braços abertos. Faço destaque de quando passamos pelo Parque Nacional do Catimbau, no sertão pernambucano. Por lá, fomos muito bem acolhidos por um nativo que nos deu a chave de uma pequena casa, a qual ele usava de base para alimentar seus bodes. Júnior o nome dele. Pessoa de extrema simplicidade mas com coração enorme. Todos os finais de tarde ele ia nos visitar para saber se estávamos bem e para conversar. Tivemos ótimas discussões filosóficas sobre a vida, felicidade e visão de mundo. Além disso, o Catimbau nos surpreendeu demais com suas belezas naturais. Considero o local que, até hoje no Brasil, mais me surpreendeu. Na estrada, já me acostumei a ouvir diversas vezes o nome de lugares que pessoas indicavam para conhecer. Aprendi que, quanto mais se escuta sobre o lugar, mais turístico ele é. Mas o Catimbau não foi assim. Fui saber da existência desse lugar apenas alguns dias antes de ir até lá. Suas belezas são surreais. Formações rochosas com muita personalidade e, de quebra, diversas pinturas rupestres de nossos ancestrais. Coisa de cerca de 10.000 anos. Os dias que ficamos por lá foram recheados de trilhas e mais trilhas desbravando todos esses visuais e histórias.

 

Fim

Ao longo dessas semanas, conforme Isa ia se acostumando com o estilo de vida, fui me sentindo cada vez mais desconfortável comigo mesmo. São coisas difíceis de explicar, pois nem todas eu consegui assimilar até hoje. O que ficou mais claro para mim, num primeiro momento, foi estar perdendo minha liberdade. Aquilo que eu já imaginava que poderia ser um risco. Estar na companhia de alguém me limitava em alguns aspectos. Eu havia estado 2 anos quase sozinho pelas estradas do Brasil. Me acostumei com uma liberdade gigantesca. E além disso, eu tinha uma mulher viajando comigo. Meu sensor de responsabilidade estava muito mais ativo. E isso acabava me gerando uma tensão maior que a normal em alguns casos. Mas não era só isso que me incomodava. Na época eu não sabia o que era, só sentia uma confusão muito grande. Depois de um tempo apenas, após a ida de Isa, que fui entender que essa confusão vinha apenas das minhas próprias confusões internas. Questões unicamente minhas. Já falei algumas vezes por aqui sobre propósito. E nós como seres humanos, precisamos ter um para viver. É isso que nos mantém ativos e da sentido para nossas vidas. E descobri que meu propósito, naquele momento, era de seguir sozinho a jornada.

A presença de Isa em minha vida fez esse propósito deixar de existir e me trazer toda essa confusão. Ela também não estava com suas questões pessoais muito bem resolvidas. Dentro dela, havia também uma grande vontade de entrar de cabeça no sistema, ganhar dinheiro, “crescer” na vida. E isso destoava dos meus o objetivos pessoais. Enfim, alguns fatores que foram demonstrando que nossa união não poderia permanecer. Nossa conexão não era mais a mesma. Seria adiar o inadiável. Nós tentamos, mas não deu certo. Acho que principalmente pra mim. Por isso um dia conversei com ela a respeito e disse que em algum momento ela teria que ir embora. Claro que não dessa forma. Tentei colocar todos meus sentimentos pra fora para que ela entendesse.  Infelizmente, ter a companhia dela, mais me fez mal do que bem. Foi difícil, mas esse assunto precisava ser falado. Após isso ainda ficamos mais algumas semanas juntos (o período entre essa conversa e a passagem de avião que Isa havia comprado para retornar a Goiânia). Foram semanas complicadas, que oscilaram entre bons e maus momentos. Os bons pareciam ser uma forma de “vamos aproveitar enquanto ainda estamos juntos”. Os ruins, principalmente pelo fato de que sabíamos que, em breve, nos separaríamos. Como a decisão partiu de mim, Isa sentiu muito. E com razão. Na época eu não entendia muito bem o que passava dentro de mim. Era meu instinto que dizia para seguir só. Pela falta de boas explicações ela se magoava. Foi muito difícil para mim. E isso fez eu ver que, no fundo, eu ainda tinha muitos problemas a resolver em minha mente. Aprendi que quando o externo nos causa algum desconforto, é porque nosso interno não está bem resolvido. E eu estava passando por isso. A presença de Isa era algo externo. Uma pessoa que me apaixonei e que coloquei em minha vida, mas que não consegui seguir com ela. Algo em mim estava errado.

Sete semanas após sua chegada, Isa pegou um avião em Maceió e retornou à Goiânia. A despedida foi abaixo de muitas lágrimas dos dois lados. No aeroporto, após ela embarcar e sumir de meu campo de visão, me encolhi em um canto e chorei como uma criança. Pessoas até vieram até mim para saber se eu estava bem. Era um choro de tristeza pela despedida junto com o sentimento de culpa que ficou em mim. E chorei também por entender que, se eu achava que estava bem resolvido, não estava mais. Alguma coisa estava errada e eu tinha que descobrir. E eu estava só de novo para tentar entender isso.

Na próxima semana, falo do meu período “pós Isa” pelo litoral do nordeste. Período de muitas caminhadas, reflexões e belos cenários. Até lá!


Publicado em: Turismo






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