Voltando à estrada
Retornei do sul diferente. Os cerca de 30 dias que fiquei por lá mexeram um pouco comigo. Por rever as pessoas que mais amo e, ao mesmo tempo, por sentir que minha casa é o mundo. Acredito na tese de que tudo na vida são fases. E o tempo que fiquei em minha terra natal me fez provar que a minha fase da estrada continuava. Nos últimos dias por lá, minhas pernas já tremiam, tamanha era a vontade de me jogar para uma BR e pegar carona. Chegar em um lugar novo, conhecer pessoas novas e seguir meu processo de autoconhecimento e crescimento espiritual. Mas foi bom demais matar a saudades das pessoas que ajudaram a moldar a pessoa que me tornei. Porém, a jornada seguia…
De avião, voltei para Goiânia, onde, após ficar mais uns dias por lá, entrei em um caminhão rumo ao Tocantins. Era por lá que eu havia parado minha viagem e era por lá que eu queria recomeçar. Meu destino foi o extremo norte do estado, região conhecida como “Bico do Papagaio”, próximo da divisa com os estados do Pará e Maranhão. Eu ainda não tinha um destino certo, mas deixaria ao fluxo me levar…
Acolhimento
Após passar o dia na estrada, minha carona me deixou a noite em uma pequena cidade. Por lá armei minha barraca em um posto de gasolina e dormi. No dia seguinte, abri o mapa do celular e vi que estava próximo da cidade de Xambioá, a qual ficava à beira do famoso Rio Araguaia, que eu ainda não havia conhecido. E nesse trecho do rio, o Tocantins fazia divisa com o Pará. Decidi pegar uma carona até lá para pelo menos conhecer esse que é um dos maiores rios do Brasil e depois ver o que aconteceria. Chegando lá, já gostei da energia da cidade de cerca de 10mil habitantes. Típica do Tocantins, povo simpático e acolhedor. E sem turismo. Como sempre, eu e minha enorme mochila chamávamos muito a atenção. Após curtir um pouco o visual do Araguaia, fui a uma padaria para comer algo. Por lá, um homem veio conversar comigo, curioso. Disse que já havia pagado minha conta (tipo de situação que eu passava muito, quando as pessoas me identificavam como um viajante) e queria saber de minha história. Após conversamos um tempo, me convidou para almoçar em sua casa mais tarde. Me explicou onde ficava e me disse para aparecer. E no horário do meio dia, cheguei por lá e fui recebido por ele, como combinado. Após almoçarmos e conversarmos sobre tudo, ele me convidou para passar a noite em sua casa. Não só uma, mas quantas eu quisesse. Inclusive, ele viajaria no dia seguinte a trabalho, por uns dias, e deixaria a chave da casa comigo. E assim fiquei uma semana na casa de Jean, um grande amigo que a estrada me deu. Relato esse caso não só por ele em si, mas para exemplificar um tipo de situação que já aconteceu diversas vezes comigo em minha viagem. De ser acolhido na rua e receber total confiança. Falo isso para que se faça uma reflexão e para que vocês saibam que o mundo tem muito mais gente transmitindo energias do bem do que do mal. Basta transmitirmos essa mesma energia que as portas do universo se abrem.
O barraco com Wi-Fi
Nesses dias que fiquei por lá, após Jean retornar de sua viagem, resolvi atravessar o Rio Araguaia de balsa e colocar o pé pela primeira vez no estado do Pará. Cerca de 30km em direção ao interior desse estado, haviam lindas cachoeiras que eu queria conhecer. Após atravessar o rio, peguei carona até a estrada de chão que levava as quedas d’água. Caminhei alguns quilômetros por essa estrada e cheguei até as cachoeiras. Passei o dia por lá, sozinho, fazendo trilhas, me banhando em quedas e subindo em mirantes naturais. Era território de onças, o que me fazia sempre estar alerta para tentar achar uma. Mas mais uma vez não consegui. Um dia eu acho essa bichana. A diversão estava tanta por lá que me perdi no horário. Ao voltar para a BR, o sol já havia se posto e estava escurecendo. Eu precisava pegar uma carona de 30km até a balsa, atravessar o rio e chegar em Xambioá. Mas o fluxo estava baixo e, por já não ter tanta luz, a carona não vinha. Eis que fica noite e começo a me preocupar. Além de eu não ter comida, água e teto, Jean aguardava meu retorno. E meu celular estava sem sinal o dia inteiro. Eu até poderia caminhar pela região atrás de algum local que me acolhesse, mas precisava avisar meu amigo que eu estava bem. Jean era muito preocupado comigo. Inclusive não ficou feliz quando eu disse que passaria o dia em serras com onças. Pensei que, se eu não desse sinal de vida, que ele poderia achar que algo de ruim aconteceu e mandar uma equipe de busca atrás de mim. Eu não sabia o que fazer.
Eis que, na nada iluminada estrada que eu estava, começa a surgir o som de uma música. Um piseiro. E junto com ela, reparei no vulto de uma pessoa que se aproximava. Fiquei com medo. O Pará tem um forte histórico de criminalidade em estradas. O homem caminhava em minha direção a passos lentos, com sua caixinha de som e, então, senta ao meu lado, sem falar nada por alguns segundos, mesmo após eu dar boa noite. Gelei. Ele me pergunta: “O que tu tá fazendo aqui?”. Contei tudo que havia acontecido com minha boa energia do bem. E ele me responde: “Bora lá para o meu barraco, passa a noite comigo e amanhã tu volta”. Expliquei pra ele a situação do meu amigo, Jean, e que eu precisava de internet. E ele me respondeu que seu barraco tinha Wi-Fi. Não vou mentir, naquele momento eu não acreditei. Eu estava numa estrada isolada de civilização humana e sou convidado para ir a um barraco no meio do mato que teria Wi-Fi. Insisti: “Tem certeza que o Wi-Fi está funcionando, amigo? Isso é muito importante”. Ele confirmou novamente. Eu não tinha escolhas e confiei no ser. E lá fomos nós, caminhar uns 2 km numa estreita e escura estrada no meio da mata até chegar ao seu barraco. Era um barraco mesmo, com bambus e lonas. Várias redes enfileiradas lado a lado. Onde ele e sua família dormiam. E lá estava ele, o Wi-Fi. Ele não me mentiu. Depois disso, além de me fazer confiar mais ainda mas pessoas, descobri que Wi-Fi existe em qualquer lugar no Brasil hoje. Mandei mensagem para o meu amigo e por la pernoitei em uma das redes. Parte de sua família estava em outra cidade, acompanhando o funeral de um familiar. Nas redes, dormimos eu, ele, um dos seus filhos e seu sobrinho. A janta foi peixe com açaí. Para quem não sabe, o açaí, típico da região norte, tradicionalmente é comido junto com comida por lá. Nesse caso, a fruta é batida sem açúcar. Uma delícia. Mas o melhor ainda estava por vir.
Açaizeiro por um dia
Cacique, apelido do meu anfitrião dessa noite, é açaizeiro. Vive da colheita da fruta selvagem na floresta. Tira a poupa, após um fácil processo, e venda na cidade. E no dia seguinte, ao amanhecer, ele e seu sobrinho iriam para a mata atrás do açaí. Na hora já disse: “Vou com vocês!”. Eles toparam dando risadas, e assim fomos no dia seguinte. Foi uma experiência e tanto. Primeiro, por estar pela primeira vez dentro da vegetação da floresta amazônica e , segundo, simplesmente por estar colhendo açaí com nativos. Por não ter experiência no processo, não subi nos pés de açaí (um tipo de palmeira com o tronco bem fino), o qual eles faziam com “esporas” (um aparato de ferro que encaixa nos pés). Ajudei no recolhimento do fruto após eles jogarem no chão. Passamos a manhã nesse processo. Após retornarmos e comermos muito açaí, agradeci o acolhimento e fui para a estrada pegar carona e retornar a Xambioá. Mais um episódio que me fez reforçar a bondade das pessoas e o quão nosso país feito de pessoas simples, mas com um conhecimento gigantesco, cada uma dentro de seu universo.
Na próxima semana, falo de quando retornei ao estado do Goiás para presenciar um fenômeno extremamente raro no mundo, dentro de um dos parques nacionais mais selvagens do Brasil. Até lá!