DIÁRIOS DE MOCHILA – Andanças pelo litoral alagoano

Olá! Na semana anterior falei do período em que fiquei com a Isa em minha viagem e dos motivos de nossa despedida. Nessa coluna falo como foram as semanas seguintes, em minha (literalmente) andanças pelo litoral alagoano.

22 de outubro de 2022

Um breve parênteses

 

A ideia de minha coluna semanal aqui no jornal A FOLHA é falar de minha jornada. Histórias, lugares e pessoas que conheci mas, acima de tudo, sobre tudo que me muda e mudou. Estou buscando ser o mais transparente possível e, inevitavelmente, meus sentimentos vem a tona. As vezes isso é confuso até mesmo pra mim. Entender, assimilar e escrever. Mas é necessário. Primeiro, para que vocês, leitores, possam entender um pouco de mim. Segundo, para que eu, de alguma forma, faça vocês refletirem. Falo isso pois algumas edições são mais reflexivas, outras com mais histórias. Estou tentando criar algo o mais balanceado possível e espero de coração que todos estejam assimilando da melhor forma possível!

 

Vida “pós-Isa”

A partida de Isa, inicialmente, apesar de ter me deixado muito abalado, me trouxe um certo alívio – por eu saber que estava sozinho de novo. Tinha de volta minha liberdade e tempo para organizar minha cabeça e entender o que se passava nela. Esse período me fez entender que algo em mim não estava bem resolvido. Com o tempo, aprendi a detectar momentos como esse. Ansiedade, falta de presença e problemas com sono. Minhas meditações, que sempre foram uma rotina diária, que me traziam paz e consciência, não estavam mais as mesmas também. Outro grande indicativo que aprendi ser um sinal para situações mal resolvidas, é quando depositamos muito ódio em algo que vem do meio externo. Alguma pessoa, uma situação, uma conversa. Os meios de fora são apenas pretextos que criamos para extravasar um problema que está dentro de nós. Quando estamos bem resolvidos, tudo está certo. Nada nos abala. Estamos em paz e fluindo no universo. Quando não estamos, um simples cair de um alfinete pode gerar um gatilho de ódio. Hoje eu tenho mais facilidade para entender isso e poder escrever por aqui, mas nessa época, eu não sabia tão bem. E o meio que decidi extravasar esse minha confusão interna foi na sociedade, no sistema.

Essas semanas “pós-Isa”, acredito terem sido as que mais fui avesso ao sistema em minha vida. Eu tinha meus motivos para isso. Já faziam meses que eu vivia quase totalmente como um ‘outsider’: Pegando caronas, dormindo na rua, ganhando comida. Cada vez mais afastado de relações monetárias e, consequentemente, seus espaços. Isso me deu uma visão de outro ângulo da sociedade. Um privilégio, inclusive. Algo que nunca ninguém nem nada vai tirar de mim. Já posso dizer que vivi como uma espécie de “vencedor” do sistema e também como um quase morador de rua. Dois extremos. Dois lados diferentes do balcão. Porém, ter o ódio por tudo não resolveria nada. Eu não sabia disso, mas aos poucos, fui tendo que entender…

 

Andando por aí

FOTO – Pipe  e pescadores em Porto de Pedras

 

Quando a Isa partiu, estávamos em Maceió. Meus primeiros dias após sua ida foram por lá mesmo. Eu sentia que precisava pensar, ter meu espaço. E foi quando decidi fazer algo que eu ainda não tinha feito em minha jornada. Seguir a subida pelo litoral alagoano caminhando pela areia. Passar boa parte do dia caminhando me faria pensar. No caminho, eu iria conhecendo as paradisíacas praias de lá e acampando no caminho. Em povoados e praias desertas. Um dos remédios que eu daria para mim mesmo seria a conexão com a natureza. Dormir em praias desertas, admirar o entardecer  e o nascer do sol várias vezes. Isso me traz paz,  me faz sentir parte de tudo. E era o que eu precisava para colocar minha cabeça no lugar.

Fiquei cerca de 15 dias caminhando pelas praias do litoral norte alagoano e sul do Pernambuco. Caminhava, em média, 15 km por dia. O suficiente para chegar em uma nova cidade ou povoado para pegar comida, tomar uma ducha e achar um canto mais deserto para eu acampar. Esse trecho do nordeste é muito turístico. Pontos como São Miguel dos Milagres e Maragogi estavam no caminho. E eu estava em pleno fevereiro. Ou seja, tudo mais cheio que o normal.

Por estar numa onda muito forte de questionamento do sistema, mal conseguia estar nesses ambientes lotados. Ver aquele excesso de pessoas e consumismo na alta temporada me faziam mal. Além disso, nesses locais, um povo nada acolhedor. Quanto maior a cidade ou mais turística ela é, mais difícil achar gente acolhedora (de uma forma geral, não é uma regra). Para eu, que vivo da forma que vivo, esses ambientes passam a não ser agradáveis. Me sinto invisível. O turista me olha curioso, mas não fala comigo. O morador local, me olha com descaso e preconceito. Rápido eles detectam que eu não represento nenhum ganho financeiro, que nada pode ser vendido para mim. Aí passo a não ser interessante para o sistema. Assim, me ignoram. Esse período me deu saudades dos últimos meses que eu estava transitando no interior do país onde tudo era o inverso. Em locais pequenos, com pouco ou nenhum turismo, onde eu era muito bem acolhido. Todos queriam me conhecer, até me ajudar de alguma forma. Mas não era essa minha realidade naquele momento.

Decidi então não contar em nada com o povo. Era eu e eu. Meu refúgio eram as praias desertas. Acampei em cenários surreais. Tive bons momentos de conexão comigo mesmo. E também tive, naqueles povoados mais fora do mapa do turismo, bons contatos com locais. Principalmente as vilas de pescadores. Numa oportunidade, inclusive, em Porto de Pedras, sai para pescar ao amanhecer com dois pescadores nativos. Passamos o dia no mar em busca do famoso peixe Agulhinha. Foi uma experiência e tanto. Eu nunca havia feito algo parecido. Voltamos com o cesto cheio. Em outro momento, em Japaratinga, num entardecer que eu observava o mar de um mirante, avistei um pequeno grupo de peixe-bois. Mamífero aquático que existe nessa região, mas extremamente raro de ser visto. E a natureza me deu esse presente por alguns minutos.

Um outro ponto alto desse trajeto foi quando estive em Maragogi. Apesar de ser um local com turismo intenso, tive bons momentos por lá. O que me ajudou foi ficar na casa de um amigo,o Juan. Esse querido amigo argentino tem visões de mundo e sociedade muito parecidas com as minhas. Era como se eu tivesse achado um parceiro para colocar pra fora todo meu sentimento ‘anti-sistema’. E falar faz muito bem. Em vários sentidos. Nos deixa mais leve. E essa leveza me ajudou a aproveitar as paradisíacas águas de lá, mergulhando, nadando e observando toda a riqueza da vida marinha. Maragogi, um lugar que tem fama e que passei a respeitar.

 

Desculpe, sistema

O final dessa minha caminhada, após andar mais de 100km durante vários dias, foi já no litoral sul pernambucano, mais precisamente, em Maracaípe. Ao lado da famosa Porto de Galinhas. Por lá passei o carnaval e conheci um casal de argentinos que foram grandes parceiros de rodas de “mate” (forma que os argentinos chamam o nosso chimarrão) e tivemos conversas muito profundas. Essas conversas me ajudaram a entender o quão eu estava sendo extremista em meus pensamentos sobre a sociedade. E eu não gosto do extremismo. Ser muito contra ou a favor de algo, nos gera ódio ao oposto. Mas acho que eu sou um pouco assim. Preciso ir a um extremo para depois encontrar meu equilíbrio. Boa parte da minha vida e viagem foi dessa forma.

A partir dali, comecei a olhar mais pra mim e menos para o que havia fora. Foi quando também comecei a entender o que falei anteriormente, sobre como despejamos no ambiente externo nossos problemas mais internos. A realidade é que, mesmo tendo passado esses vários dias pensando e tendo conversas profundas, acabei ficando mais confuso, pois entendi que a sociedade estava sendo o canalizador dessa minha confusão. Ou seja, eu realmente tinha que olhar pra dentro de mim e me resolver. O que eu tinha exatamente? Não sabia. Mas sabia que era um processo que estava começando e uma hora iria terminar.

Isso é o que eu julgo de um processo de crescimento espiritual. Estarmos confusos, olharmos para si, deixar a verdade mais profunda vir e resolvermos o problema. Falando assim parece fácil, mas não é. Prova disso é que tentamos sempre fugir dessas verdades. De várias formas. As drogas são um dos exemplos mais comuns. Elas nos anestesiam e não nos fazem pensar. Mas é como usar um anti-inflamatório para uma dor de dente. A dor vai passar por um momento, mas logo volta. Não cura. Para curar, o dente tem que ser arrancado, levamos pontos e temos que passar pelo processo de cicatrização. Mas tentamos fugir disso. Outros exemplos são as distrações. Ver um filme, uma série, ler um livro, escutar música, estar com alguém. A verdade vem no silêncio e no isolamento. E temos que estar abertos a ela. Entender nossos sinais de que algo não está bem dentro de nós e deixar ela vir. Foi nesse época, chegando na capital pernambucana Recife, que comecei a entender bem tudo isso.

Na próxima coluna conto das semanas que fiquei por lá e minha volta para o sertão, quando passei pela situação de mais medo do ser humano em minha jornada. Até lá!


Publicado em: Turismo






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