Na natureza selvagem – Nov/Dez 2020
Deixei Astrogildo e atravessei o rio para seguir na trilha. O sol já havia se posto e havia apenas aquela luminescência do final da tarde. Poucos minutos antes havia caído uma chuva forte e passageira, então o chão da trilha, que era de areia, estava molhado. E foi quando reparei numa pegada grande e diferente no chão, algo que eu ainda não tinha visto. Olhei de perto e entendi do que se tratava. Era uma onça. Uma pata do tamanho da minha mão e outra menor ao lado. Ela estava com seu filhote. Para os que não sabem, essa situação é considerada a de maior risco pois a mãe pode sentir que sua cria está ameaçada. E como havia acabado de chover, eu sabia que aquele rastro era recente. E o pior, eu estava seguindo elas, indo em sua direção. E a noite chegando.
Apertei o passo e procurei manter a calma. Porém, num momento a trilha se fechou e, junto com isso, chegou a escuridão. Liguei minha lanterna e iluminei o chão. Eu continuava a seguir o rastro do felino. Fui quebrando os matos da forma de que dava, mas já sem saber se estava no caminho certo. Parei para me acalmar, eu estava com muito medo. Estava em uma mata completamente fechada, no escuro, sem ter certeza para onde estava indo e seguindo o rastro de uma onça. Digamos que não é o cenário mais favorável de todos. Foi quando senti um cheiro forte e estranho. Lembrei de um matuto da região ter me dito uma vez que a onça tinha um fedor muito forte. E era esse o fedor que eu estava sentindo. Ou seja, ela estava muito perto de mim mas eu não conseguia a ver. Foi quando testemunhei em mim mesmo o poder que a nossa mente tem. Me baixou um nível de adrenalina altíssimo e virei o incrível Hulk (se fiquei verde eu já não sei). Sai correndo, gritando como um animal e quebrando os matos com meu corpo e rosto. Nem sei quanto tempo isso durou, a adrenalina nos faz perder a noção do tempo. Sei que num determinado momento o mato se abriu e a trilha voltou ao normal. Logo ao lado achei uma base de acampamento (acredito que os nativos usavam como base para caçar) com lenha cortada, espaço perfeito para colocar a barraca, tendo uma nascente de rio ao lado. Relaxei num primeiro momento, mas logo em seguida juntei o máximo possível de lenha e fiz uma grande fogueira (fogo normalmente afasta animais, eles têm medo). Fiquei parado na frente desse fogo por quase uma hora com um pedaço de pau na mão, bufando como um animal e olhando para todos os cantos atrás da bichana, mas elas não apareceu.
Aos poucos fui me sentindo seguro e mais tranquilo. Usei a panela e o macarrão que o Astrogildo havia me dado para cozinhar e comer algo e, enfim, dormi. Foi a primeira vez que dormi na mata selvagem, forçadamente, mas foi. E o mais doido foi que o Astrogildo, poucas horas antes, havia me dado aquela panela e o macarrão. Coisas difíceis de entender, mas só agradeço. No dia seguinte, com luz, andei mais alguns km e cheguei ao povoado. Falando com primeiro morador que apareceu, ele me contou que de fato, aquela era região de uma onça preta que estava parida. Após esse episódio, além de comprar um facão, criei uma certa obsessão por me encontrar com uma onça no meio do mato, que carrego comigo até hoje. Friso que eu estava iniciando minha vida na natureza selvagem e essa situação era totalmente nova pra mim. Hoje eu já tenho outra visão e sei que a probabilidade de uma onça atacar um ser humano é baixíssima, pois ela nos vê como predador. Por isso criei esse objetivo de um dia acha-la, pela mágica do momento. Um dia espero concretizar…
Vale do Pati
A Chapada Diamantina tem uma trilha considerada uma das mais bonitas e desejadas do país, o Vale do Pati. Trata-se de um vale habitado por pouquíssimos moradores e recheado de belos visuais, cachoeiras e mirantes. Em meio a uma grande e selvagem natureza. Pelo fato do parque estar fechado (em função da pandemia de 2020), essas trilhas não poderiam ser feitas. E quando são feitas, em praticamente todos os casos, os interessados contratam guias locais. São diversas trilhas que se cruzam pelo vale e que, dependendo, pode-se chegar a cerca de 100km de caminhadas. Obviamente, distância que se faz em vários dias. Em casos normais, também, os trilheiros se hospedam na casa dos moradores (“patienses”), onde é cobrado um valor para estadia e alimentação. Esse valor não é nada baixo, apesar das casas serem extremamente simples, pois não se tem outra opção, além do que a comida chega por lá através de jegues que a carregam da cidade até as casas dos patienses (não existem estradas ate o vale, apenas trilhas). Bom, teoricamente eu não poderia fazer essa aventura, pelo parque nacional estar fechado, por não ter casas para passar a noite e não ter guias para o trekking. Pensei: “Guia eu já não uso mesmo, posso ir sozinho usando meu GPS. Posso acampar no mato e não depender da casa de ninguém. Quanto ao parque, eu já estava infligindo as regras faziam semanas. Porque não mais um pouco? E comida, eu levaria um belo estoque.” E assim me organizei para fazer essa grande aventura.
Foram 7 noites o total em que passei no vale. Minha mochila, por ter mantimentos para vários dias, estava pesando cerca de 30kg. No primeiro dia, após pegar uma carona, entrei na primeira trilha e tive de cara o grande desafio de subir uma serra muito alta e íngreme. Após superá-la, caminhei alguns quilômetros atrás de um local em que eu pudesse acampar. Eu estava beirando a borda do vale e o visual era surreal. Me senti um pouco no Senhor dos Anéis, um pouco no Jurassic Park. E eu estava muito empolgado, afinal, essa seria a primeira vez em que eu iria acampar no mato selvagem (fora a vez da onça, que foi compulsoriamente), e o faria por vários dias. Eu sentia medo, não vou mentir. Assim como sinto até hoje quando faço aventuras parecidas. Principalmente por algum animal peçonhento que possa me pegar. Eu estaria a vários e vários km de distância de qualquer tipo de socorro médico e sozinho. Mas essa era uma adrenalina boa, que ao mesmo tempo que me dava esse medo me impulsionava e deixava alerta. Nas minhas andanças no mato sozinho, aprendi a fazer tudo com muita calma e consciência, sempre olhando muito para onde fosse tocar com meus pés e minhas mãos. Nesse primeiro dia acampei em uma antiga toca de garimpeiro, local onde acabei ficando duas noites. Ao chegar e montar minha barraca, fui a um ponto mais alto para ver o entardecer. Olhei aquela vastidão da natureza, o som dos pássaros e eu inserido naquilo tudo. Liberdade. A sensação verdadeira e real de liberdade e de sincronia com a natureza e o universo. Eu estava encaixado no mundo e em mim mesmo. Chorei como uma criança. Mas aquele choro com sorriso. Lágrimas da mais pura felicidade e existência.
Poderia entrar em detalhes de cada dia, com tudo que fiz, pensei e senti, mas isso tornaria o texto muito longo. Mas foi uma das experiências mais marcantes até hoje em minha viagem. Fiz coisas que eu nunca havia feito, como acampar em antigas tocas de garimpeiro e na beira de belos rios. Para cozinhar eu fazia fogo e, muitas vezes, sofri por a lenha estar muito úmida. Água eu bebias dos rios, o que eu já vinha fazendo a semanas. Peguei sol, chuva, frio e calor. Acampei em 4 lugares diferentes. Chorei de felicidade, mas também de tristeza. O isolamento sem nenhum tipo de distração faz alguns fantasmas internos aparecerem. Mas eles precisam aparecer para sumirem de vez. Essa experiência me mudou muito, apesar dos poucos dias. Aprendi que eu realmente amava estar inserido na natureza e sozinho. Aquela natureza que, para um cara do litoral, era total novidade. E foi isso que fez eu, após finalizar meu período na Chapada Diamantina, decidir me adentrar mais no Brasil, indo em direção ao Goiás, no ano de 2021 que acabava de nascer.