Mar/abr-2021 – Trocando de selvas
Entre Chapada Diamantina (Bahia) e dos Veadeiros (Goiás) fiquei 4 meses. 120 dias transitando apenas por trilhas, cachoeiras, acampando no mato e estando em contato com povos das regiões. Após minha saída da Chapada dos Veadeiros, eu me sentia algo próximo ao Tarzan (mas, se baseando pelos meus músculos, tava mais pra Mogli). E meus próximos dois destinos seriam duas das grandes capitais brasileiras: Brasília e Goiânia. Da selva real para a selva de pedras…
Ainda em março (2021) me desloquei para a capital do país. Foi logo quando estourou a “segunda onda” da pandemia. A maior parte dos lugares do Brasil decretaram lockdown novamente e em Brasília não foi diferente. Casualmente, eu estava com um problema no joelho (numa batida que dei em uma trilha) e estava precisando de repouso. Então o cenário para mim acabou sendo bom. Fiquei em Brasília durante cerca de um mês, parando na casa de amigos que havia conhecido até então em minha jornada e girando pelas cidades satélites do DF. Foi um período de readaptação à cidade grande. Mas foi positivo. Intensifiquei amizades e conheci bastante da cultura “candanga”.
Saindo de lá, fui conhecer a capital do Goiás, estado que eu ainda pretendia desbravar por um certo tempo. Foi a primeira vez que usei a um aplicativo chamado Couchsurfing, quando o viajante (no caso eu) se hospeda na casa de um local sem custo, apenas pela troca de vivências e culturas. Fiquei na casa de dois moradores diferentes de Goiânia e adorei a experiência. Se existe muito mais oportunidades de dar “rolês” locais. Para eu que estava cada vez mais tentando me afastar do meio turístico, isso veio em muita boa hora. Nesse meio tempo, passei um dia na cidade de Anápolis, muito próxima à capital, onde tive a experiência de saltar de paraquedas. É uma mistura de medo, com adrenalina e felicidade. A parte mais doida para mim foi quando, já no avião, suas portas abriram para que eu saltasse. Me perguntei: “O que eu estou fazendo aqui?” Mas isso era o medo falando por mim e eu não tinha mais opção. Depois de saltar, tudo se justifica. A sensação é única, difícil de explicar. O tempo fica relativo e tudo fica no seu lugar. Diz ser a sensação mais próxima de estar voando. Se tu ainda não fez, faça um dia.
Quebrando regras (e problema com canos)
Saindo de Goiânia, fiquei alguns bons dias na cidade de Pirenópolis, no centro do estado do Goiás. Cidade histórica repleta de belezas naturais. Mas por lá tive uma história marcante. Eu já havia provado pra mim mesmo (e pra quem mais quisesse) que não respeitava muito regras, quando o assunto se tratava de natureza e minha liberdade. Pela região, existe o Parque Estadual da Serra dos Pirineus, porém, no período em que eu estava lá, por ainda estarmos na “segunda onda” da Covid, ele estava fechado para visitações. Eu sempre achei esses decretos uma grande de uma hipocrisia, no momento em que eu via ônibus e bares lotados. Isso me dava ainda mais confiança pra transgredir. E foi quando peguei minha mochila e andei até a área desse parque. Ele fica alguns bons kms isolado da cidade, ou seja, todos visitantes chegam lá de carro. Mas fui na caminhada, como já era meu costume. Após passar o dia todo caminhando no forte sol e subir a serra por uma estrada de chão, atravessei uma cancela que avisava “Parque temporariamente fechado”. Após mais alguns kms, cheguei ao topo da serra, onde encontrei uma pequena casa, a sede do parque. Ela estava vazia, mas bem cuidada. Um par de chinelos na frente dela me fizeram entender que pessoas transitavam por lá. Já era final da tarde quando cheguei e eu queria aproveitar o entardecer em cima de um dos picos que por lá existem. Fiz uma pequena trilha e cheguei ao topo, onde fiquei até o anoitecer. Um final de tarde mágico, onde eu era o único humano em meio aquela natureza.
Ao voltar a frente da casa, onde havia deixado minha mochila, decidi armar minha barraca. E foi aí que o problema surgiu. Ao fincar um dos “espetos” (pequeno pedaço de ferro utilizado para fixar a barraca no solo), senti que havia alguma resistência na terra. Como o solo era pedregoso, na hora imaginei ser uma pedra, coisa que eu já estava acostumado. Então, dei um pequeno golpe nele com meu pé para quebrar a pedra ou afastar ela, de um jeito que o espeto se acomodasse. Porém, ao fazer isso, eis que começa a brotar água do chão. Começou sendo pouca, mas rapidamente aquilo virou um grande chafariz, inclusive molhando eu e minha barraca. Eu havia estourado um cano que abastecia a casa. Pensei no cenário: “Estou em um parque estadual que se encontra fechado, montando minha barraca em um local onde é proibido acampar e estourei o cano da casa dos funcionários do parque. Cenário não muito favorável”. Minha grande sorte foi que o registro ficava na parte de fora da casa, o qual achei depois de alguns minutos e pude estancar o vazamento. Mas eu continuava em más lençóis. Só pensava que em algum momento algum dos funcionários poderia aparecer. Ou mesmo nem aparecer, o que me faria sentir muito culpado depois. Eu nunca entendi de encanamento. Aquele era um local isolado em meio às serras e eu imaginava que uma retroescavadeira teria de vir para fazer o conserto. Imaginei o pior dos cenários possíveis. Minha ideia era partir logo cedo, então, achei uma pedra grande e com outra menor escrevi: “Desculpe, Felipe”. E junto com isso meu número de celular. Isso me tranquilizou e ajudou a dormir.
Sinceridade e retribuição
Mas logo após eu pegar no sono, escuto o som de um carro se aproximando e o farol iluminando minha barraca. Alguém havia chegado. E esse alguém já ficaria ‘puto da vida’ por ver uma barraca armada por lá. Quem dirá se saber que a casa estava sem água e um cano estourado. Respirei fundo, decidi que falaria apenas a verdade e manteria a humildade. Saí da barraca. Observei a silhueta de dois homens que nada falaram. Pude identificar o adesivo da caminhonete como sendo um carro oficial do parque. Minha primeira frase: “Pessoal, sei que o parque está fechado e que eu não poderia nem ter passado aqui durante o dia, quem dirá acampar. Peço desculpas, mas vim igual. Sou um amante da natureza e não sei quando vou estar pela região de novo, por isso vim. Minha ideia é só passar uma noite. Amanhã cedo eu parto”. Vendo minha sinceridade e humildade, eles se desarmaram. Ficaram uns segundos em silêncio mas depois disseram que tudo bem, mas que no dia seguinte eu deveria partir. Ok, a primeira parte eu já havia superado, foi fácil. Segui: “Mas a notícia ruim eu ainda não dei… a casa está sem água. Furei um cano sem querer e desliguei o registro. Peço desculpas de verdade, estou morrendo de vergonha. E vou me responsabilizar financeiramente pelos custos do reparo. Peguem meu telefone e podem tirar fotos do meu documento”.
Silêncio. Como dois carrascos indo para a forca, eles vieram em minha direção. Não sabia se iam me bater ou fazer sei lá o que. Vieram analisar o estrago com uma lanterna. Menos pior. Não dirigiram o olhar nem a palavra pra mim em nenhum momento. Voltaram até o carro, falaram coisas num tom que não pude ouvir e foram embora. Não entendi nada. Fiquei alguns minutos parado no meio da escuridão tentando assimilar o que havia acontecido. Entendi que a melhor opção seria dormir. A verdade eu havia falado e meu celular estava gravado na pedra. Escutei barulhos estranhos à noite. Além de tudo, aquele era um território de onça. Preferi não sair, já estava com outros problemas. Acordei não muito cedo, já qie a noite não tinha sido muito tranquila. Ao sair da barraca, lá estava o carro de novo e meus dois amigos dentro da casa. Um deles veio até mim com um copo de café. Já era um bom sinal. Entendi como uma demonstração de paz. Ele me explicou que aquilo era algo simples de se resolver e que era pra eu ficar tranquilo. Explicou também que na noite anterior eles estavam muito bravos, mas ao mesmo tempo, sem saber como reagir por eu ter sido sincero. A melhor forma que eles acharam na hora foi o silêncio. Disse que a maioria das pessoas teria fugido. E gostaram do que viram na pedra. Ganhei o respeito deles ali. Ele me convidou pra entrar, onde comemos um café da manhã juntos e conversamos por horas. Eles queriam saber de minha história e filosofamos muito sobre a vida. Após isso, arrumaram o cano em menos de 5 minutos e, pra finalizar, me deram carona até a cidade (era algo próximo a 20km). No caminho, iam parando em pontos pra eu conhecer. Trocamos contato e ficamos amigos. Esse dia me pôs em prova que a energia da sinceridade e humildade deixa a vida mais leve e nos tira de muitos problemas. Algo que eu já sabia, mas que esse dia fez eu nunca mais esquecer.
Na semana que vem conto como começou o maior movimento que fiz até hoje em minha viagem, ainda no estado de Goiás. Até lá!