Tocantins, cheguei
Tocantins. O estado que veio a ser minha casa após minha saída do Goiás. Estado que até hoje tenho dentro do meu coração pelas paisagens mas, principalmente, pela receptividade do povo. Já pensei muito sobre o porquê alguns estados são mais receptivos que outros. E umas das conclusões que cheguei é relacionada a quão povoado ele é. Estados com menor densidade populacional acabam tendo municípios menores. Municípios menores, via de regra, possuem menores índices de criminalidade. E baixos indicies de criminalidade fazem o povo não ter tanta desconfiança de uma pessoa nova que chega. E o Tocantins possui baixíssima densidade populacional. Tendo uma das maiores áreas, dentre todos estados, abriga cerca de 1 milhão e meio de habitantes. Não sei ao certo, mas posso chutar que um grande bairro de São Paulo tem algo próximo a isso. Isso faz com que os municípios de lá tenham sempre um baixo número de habitantes. 3mil, 2mil e até menos de mil moradores. Analisando apenas por estado, foi o que eu até hoje me considerei mais bem acolhido. Fora isso, considero que os rios mais bonitos do Brasil (pelo meu critério de beleza e pelo que vi até agora) estão lá. Na maioria das vezes, de água azul esverdeada, temperatura perfeita, fundo de areia e praias fluviais que mais parecem as de um litoral. Aliado a isso, belas cachoeiras, serras intocadas e uma fauna selvagem em meio ao cerrado.
Em meu primeiro mês por lá, desbravei a região do Parque Nacional das Serras Gerais. Foi quando minha paixão pelo estado começou a brotar. Rios, cavernas e lagoas paradisíacas. Em uma oportunidade, inclusive, dormi dentro de uma caverna no sul do estado. Nunca havia feito isso e queria ter a experiência. O silêncio total lá de dentro era interrompido apenas pelo bater de asas das revoadas de morcegos durante a noite. Acampei também uma noite em frente à Lagoa da Serra, um dos lugares mais lindos que minha barraca já viu até hoje.
Carona e revólver
Nesse período, também tive algumas caronas “interessantes”. Coloco o parênteses porque inicialmente foram caronas que me deram medo, mas depois de ver que tudo deu certo, ficaram apenas as risadas. Numa delas, logo nos meus primeiros dias no estado, um carro apenas com um homem parou para mim. Papo vai e papo vem, ele me disse ter recém saído da cadeia. Como sou curioso, perguntei porque ele estava preso, e a resposta que tive foi: “Já matei muita gente e roubei muito banco, mas teve um que matei e a polícia me pegou”. Eu e ele em uma estrada deserta tendo essa conversa. Ainda nesse assunto, ele me disse que tinha muita gente que queria matar ele por lá, e seguiu: “Tenho que andar sempre protegido. Não notou nada embaixo do tapete do teu banco?”. Até então eu realmente não havia notado e, quando olhei, uma ponta de um revólver reluzia para mim. Não sabia o que responder e fiquei em silêncio. Acho que ele notou minha instabilidade e começou a rir. Disse que não era pra eu me preocupar, ele só estava contando tudo porque tinha gostado de mim e se sentido confortável. Ri junto, mas mais de nervoso. Depois, de fato, ele não queria meu mal. Além de me dar a carona me deu boas dicas sobre as próximas cidades que eu passaria.
Carona e baseado
Mas a melhor história de carona que tive por lá, e acho que uma das melhores até hoje em minha viagem, ainda não foi essa. Estava eu com meu dedo levantado na saída da estrada de Almas, querendo ir para a próxima cidade, Natividade. Como todas estradas do Tocantins, vazia, pouquíssimo fluxo. Eis que um gol bolinha, caindo aos pedaços pára para mim. Até aí tudo bem, normalmente quem me da carona são os donos de carros mais velhos e simples mesmo. Porém, ao olhar para dentro, vi que o carro estava cheio. Dois homens na frente e uma mulher com um bebê de poucos meses na parte de trás, junto com algumas quinquilharias. De pronto, eu agradeci e disse que esperaria uma próxima carona. Fiquei imaginando eu e minha mochila no meio daquele caos, junto com aquele bebê. Um desvio de buraco e ela poderia esmagar o pequeno ser. Então, o dono do carro desceu. Tento não ter preconceito de ninguém por primeira imagem, mas as vezes essa imagem é pesada demais. Ele tinha todo estilo de alguém que já havia passado boa parte da vida preso. E me disse: “A gente da um jeito, entra aí”. Agradeci de novo e insisti para eles seguissem sem mim. Ele respondeu, já abrindo o porta malas: “Tu não tá entendendo. Tu vai comigo sim. Entra no carro”. Olhei para um lado, para outro e ninguém por perto. Vi que não tinha escolha.
De alguma forma mágica conseguimos colocar minha mochila no bagageiro e entrei no carro. No início, ninguém falava nada. Todos com cara fechada. Apenas o pequeno sorria para mim. Resolvi puxar assunto, eles tinham que me ver como amigo, como parceiro. Que eu era um deles. Comecei a fazer perguntas sobre os lugares da região para conhecer, falando alto e sorrindo. Eu tinha que passar segurança. O motorista, “Neguinho”, me respondia de uma forma meio estranha. Me dei conta que ele estava (bem) alterado. Estava dando umas bicadas em uma garrafinha de cachaça, mas acredito que tinha outra droga na mistura. Suas respostas eram sem nexo, mas eu fazia que entendia e concordava sempre. Inclusive, determinou que meu nome não era Felipe, e sim, Gabriel. Concordei também. Até que, num determinado momento, Neguinho simplesmente parou o carro no meio daquela estreita e deserta estrada. Não havia acostamento, paramos no meio da estrada mesmo. Sem falar nada, ele e seu parceiro da frente desceram, como se já soubessem o que iriam fazer. Olhei para suas esposa, que estava ao meu lado, mas ela não devolveu o olhar. Como se já soubesse o que aconteceria. Meu coração acelerou. Ele ordena: “Gabriel, desce”. Meu coração parecia estar na boca. Naquele momento, para mim era certo que eles me roubariam. Tentaria achar um jeito de não me matarem. Desci tremendo.
Fomos até a parte de trás do carro. Eu suava frio. Então, ambos sentam no chão e me pedem para que eu sente também. Que forma diferente de matar alguém, sentado. Cada vez tudo estava mais estranho. Por fim, Neguinho coloca a mão numa pequena bolsa que ele carregava. É o fim, pensei. De lá, ele traz um pequeno cigarro enrolado e diz: “Pausa para o baseado, Gabriel”. E acendeu seu cachimbo da paz. Minha adrenalina misturada com o alívio daquele momento me fizeram jogar toda minha sinceridade, dizendo: “Caramba! Eu jurei que vocês iam me matar!”. Ele riram e eu ri junto. Ficamos por lá uns 20 minutos falando sobre minha história de vida e filosofias, enquanto os carros que passavam desviavam de nós, sem entender nada. Depois partimos para Natividade. Além de não me fazer nenhum mal, Neguinho me deu uma dica de ouro de uma família que eu poderia procurar por lá e que me acolheria. E deu certo, nessa família fiquei por uma semana, onde ainda comemorei meu aniversário de 31 anos. Família do querido Tid, pessoas que até hoje mantenho contato e levo no meu coração. Por lá, confirmei o que eu já imaginava. Neguinho já havia sido preso por homicídio e roubo.
Confiança
Até hoje eu penso nessas caronas que relatei. Apesar da desconfiança de alguns momentos, meu instinto sempre foi o de manter a compostura e confiar. Tratar bem, com humildade e respeito. Realmente, não sei até que ponto eles não pararam aquele carro pensando em me fazer algum mal. Dependendo da forma como eu me comportasse, o resultado poderia ter sido outro. Confiar, sempre confiar.
Aprendi para mim que a energia da confiança, sinceridade, humildade e simpatia barram qualquer energia ruim. Seguindo o contrário, as consequências podem ser muito negativas. Em dois anos e meio de viagem nunca passei por nenhum grande problema com o ser humano. Situações estranhas sim, mas nada de fato me aconteceu. E sinto que essa energia é quem me faça ter o corpo fechado. Desconfiar no mundo de hoje é entendível, visto que somos bombardeados diariamente por tragédias e mais tragédias, por vários meios. Mas isso é uma parte pequena desse mundão, acreditem. Hoje tenho preguiça de desconfiar, seja o que for. Se quando estamos desconfiados os problemas já acontecem, por que não confiar? Acho mais prático e leve. Se acontecer algo, beleza. Ia acontecer igual. Mas quanto mais entendo isso, mais me sinto blindado de qualquer mal. Confiar no universo é bom demais. Acho que a vida é muito curta para vivermos com medo e desconfiança. E a única grande certeza desse mundo é que algum dia iremos morrer.
Tenho total noção que sou homem, e não mulher. Que sou branco, e não negro. Que tenho estudo, e não analfabeto. Isso facilita e muito. Mas deixo esse ponto sobre a confiança para que todos possam refletir um pouco.
Na semana que vem, falo das minhas semanas seguintes no Tocantins e minha passagem por um dos lugares mais surreais que já estive até hoje. Até lá!