MITO E HISTÓRIA

Costumo, aliás, dizer que a Guerra é na Ucrânia e não “da” Ucrânia porque ali estão se defrontando não só potências nucleares, mas concepções de mundo e governança das nações, herdadas do século passado. Todos temem pelo pior: o incidente não calculado, a faísca do distraído no depósito de inflamáveis. Aí vamos todos pelos ares da rosa tóxica. Hora de parar um pouco e refletir, já que é o único que podemos fazer. Volto aos gregos, de onde provém nossa civilização ocidental.

Galleria degli Uffizi, The Birth of Venus, c. 1486, Alessandro Botticelli (1445-1510)
25 de março de 2022

Foi-se o verão, já sentimos o friozinho nas madrugadas e começamos a substituir a cerveja pelo bom vinho no acompanhamento de bons filmes e  leituras. Tempos de guerra lá pela Europa, com consequências que já se fazem sentir na Ordem Mundial ameaçada pela Rússia, que tem as costas largas no continente asiático. Quem está com a razão? Os séculos talvez o digam. Ou não…

Costumo, aliás, dizer que a Guerra é na Ucrânia e não “da” Ucrânia porque ali estão se defrontando não só potências nucleares, mas concepções de mundo e governança das nações, herdadas do século passado. Todos temem pelo pior: o incidente não calculado, a faísca do distraído no depósito de inflamáveis. Aí vamos todos pelos ares da rosa tóxica. Hora de parar um pouco e refletir, já que é o único que podemos fazer. Volto aos gregos, de onde provém nossa civilização ocidental.

Werner Jaegger, um dos mais reconhecidos estudiosos da cultura grega, no seu alentado “PAIDEIA – A formação do homem grego” – https://1library.org/article/werner-jaeger-paideia-grega-influ%C3%AAncia-eurocentrismo-pensamento-educacional.q7rw98ry , nos ensina que  aquele povo da Antiguidade tinha a “Ilíada” e a “Odisseia” como livros  de cabeceira. Como se fossem a Bíblia, para os católicos. Teria sido escrita em forma de poema, por Homero, lá pelo século VIII A.C., e ali traz ele uma cosmologia sobre a origem do mundo, no enlace do Céu (Urano) com a Terra (Gaia), do qual emanam deuses antropomórficos com apetites vorazes e mortais criaturas, não raro objetos de suas paixões, a quem um deles entrega o fogo e vãs ilusões como lenitivo.   Li o livro há muito tempo mas guardo algumas passagens que hoje me ocorrem: A importância do mito e da força do destino na vida dos gregos influenciados por Homero. Isso porque vi ontem um documentário francês,  “ Grandes Mitos Gregos”, com o episódio de Antígona. Ocorreu-me registrar algumas questões ali suscitadas antes que a memória me falte. Afinal, o tempo não para…

Todos sabemos da tragédia de Édipo que, à força do destino, acabou matando o pai, Rei de Tebas, e casando-se, sem o saber,  com a viúva dele, Jocasta, sua verdadeira mãe. Este tema, do assassinato do pai, é recorrente na mitologia grega e se inicia, justamente, quando o filho mais novo de Gaia, Cronos, à seu pedido a liberta do abraço que a unia indissolúvel e compulsoriamente a Urano, dando origem ao mundo.  Revelada a Édipo sua verdadeira história, este, em desespero, vai o encontro da mãe e esposa, que também a escutara e a encontra  morta. Suicidara-se em idêntico desespero. Retira-lhe, então,  dois broches de ouro pendurados em suas vestes com cujos alfinetes  fura os próprio olhos para nada mais ver, senão purgar seus crimes. Sai a esmo, cego e destruído,  pelo mundo, carregado pela filha Antígona, deixando o Reino aos dois filhos Etéocles e Polinissis não sem profetizar-lhes uma acirrada disputa pelo poder.  Tem seu fim  devorado por um cataclisma. Neste ínterim, os filhos já estão em guerra pelo poder em Tebas, digladiando-se, ao final de uma luta interminável entre seus exércitos, em duelo mortal no qual ambos perecem, sob os olhares suplicantes da impotente Antígona, já de volta à sua cidade. Com isso, e temente à novas inquietações no Reino, ascende com mãos de ferro ao poder Creonte, que procura honrar Etéocles, porque detentor do trono disputado pelo irmão com a ajuda de estrangeiros, dando-lhe ritos e sepultura na forma da Lei, enquanto o cadáver de Polinissis jaz a céu aberto no campo de batalha, condenando sua alma à eterna peregrinação. Indignada, Antígona se revolta e na calada da noite entoa junto ao corpo do irmão Polinissis os cantos fúnebres deitando-lhe a cobertura de terra conforme a tradição. Por isso é condenada  por Creonte e, antes que os soldados a encarcerem, ela própria se dirige ao mausoléu da família onde é encerrada à morte. Segundo a lenda este ato inaugura o fim do mito e o nascimento da liberdade individual que dá início à História, numa interpretação de que o Estado nunca está acima dos deuses.

Essa força mística da Liberdade talvez tenha alimentado John Locke no século XVII projetando-se até hoje como uma força avassaladora da condição humana. Não obstante, foi um contemporâneo seu, Thomaz Hobbes, na abertura do mundo moderno,  que interveio com o “Leviatã”, recolocando a questão do Estado e da Liberdade em novos termos que seriam sublinhados pelo Iluminismo. Aí os deuses, depostos pela Razão, redefinem as relações entre Liberdade e História, fazendo da razão o fio condutor do livre arbítrio. A liberdade na sociedade organizada segue Creonte, embora louve o gesto humanitário de Antígona, mas está cerceada pelo conhecimento dos limites. Talvez nunca mais sejamos completamente livres. Nem nós mesmos, nem nossas Nações, sempre articuladas à teia de condicionantes e determinações sem grande conteúdo moral, mas histórica e geograficamente determinadas. Quantas povos pereceram sob as patas dos exércitos de Alexandre, de Cesar, de Gengis Khan, de Cortez, do Rei Leopoldo da Bélgica e da Rainha Vitória da Inglaterra, do General Custer, de bandeirantes vicentinos à preação de índios aqui nos arredores de Torres? Todos com suas razões, míticas ou históricas.

 

 




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